A Propósito do mandato do deputado: pertence realmente ao deputado ou ao partido em cuja lista o deputado foi eleito?
Não é de agora que se faz esse questionamento, no nosso sistema político/eleitoral, sem que haja qualquer resposta concreta por parte do legislador, pois este pode ter entendido que tanto no corpo como no espírito da lei esta questão é cristalina. Mas a nossa preocupação tem a ver, principalmente, com a justiça da mesma. Lançamos a questão para uma reflexão mais profunda.
O nosso sistema político/eleitoral determina que para as eleições legislativas podem concorrer partidos políticos e/ou coligações a um mínimo de cinco círculos eleitorais, em que os candidatos a deputados se perfilam em listas partidárias/de coligações, discutidas no seio de cada partido concorrente, e ordenadamente constituídas. Nem sempre se exigiu que cada partido/coligação se concorresse a um mínimo de cinco círculos eleitorais. A UCID, por exemplo, equivocadamente, chegou a eleger dois deputados, concorrendo somente para o círculo eleitoral de São Vicente. Depois se apercebeu de que, tratando-se de eleições legislativas, trata-se da possibilidade de alternância ao poder, o que é praticamente impossível, na nossa realidade, concorrendo num único círculo eleitoral.
Para cada círculo eleitoral, cada partido/coligação concorrente avança com a sua lista (plurinominal), com um programa e promessas outras. O cidadão eleitor é chamado a votar nos símbolos partidários, de acordo com a sua preferência/rejeição e adesão ou não aos programas apresentados. Os partidos/coligações apelam ao voto nos seus programas e promessas, em nome dos próprios partidos/coligações, de acordo com o lema criado, sem fulanizar praticamente ninguém, pois sabem que, em termos legais, nem o primeiro-ministro é eleito directamente. Com isso fica claro que o mandato será do povo/eleitores, que escolhe os deputados do partido A, B ou C, em conjunto, para o representar, e não um ou outro deputado isoladamente. Tanto assim é que logo que um ou outro deputado seja cooptado para o exercício de qualquer função incompatível com a do deputado, a “lista” corre e avança imediatamente para as funções do deputado cooptado o suplente melhor posicionado. Por que, então, quando há infidelidade partidária ou expulsão do partido, por qualquer motivo, o deputado que foi eleito pelo povo, mas numa determinada lista partidária, sob um determinado desígnio, reclama individualmente seu mandato? Do nosso ponto de vista, isto é um equívoco, além de contraditório. Como é que não se pode candidatar individualmente nas legislativas, mas, em consequência, se possa chegar a um mandato, no Parlamento, individualmente, contrariando os pressupostos adjacentes às eleições legislativas?
Basta sairmos à rua para perguntarmos aos eleitores em que deputados votaram nas últimas legislativas, para percebermos que quase todo o mundo se lembra ter votado no partido A, B ou C, mas a maioria nem se lembra dos deputados eleitos pelo seu círculo eleitoral. E mais, os fiéis a um determinado partido ou outro até já sabem em que partido votarão em 2016, independentemente da situação futura em que se encontre o país ou de quem venha a fazer parte dessas listas.
No Brasil, um país que, na nossa opinião, tem um dos sistemas eleitorais mais avançados do mundo, já não se contenta com o facto do mandato pertencer ao deputado singular, porquanto contraditório, e se está debatendo como debelar essa esquiva de responsabilidades, de compromissos e de infidelidade partidária para o proveito próprio. Não esqueçamos que, no Brasil, as eleições dos deputados federais e senadores se dão em sufrágio plurinominal de lista, ou seja, os eleitores votam directamente nos seus candidatos, embora eles se apresentem em listas, juntos com outros candidatos. Mas, mesmo assim, por causa dessa troca-troca partidária na Câmara dos deputados, chegou-se à conclusão que o mandato deve pertencer ao povo que o delegou ao partido em cuja lista o deputado votado se encontrava e não ao deputado individualmente. Obviamente, isso requererá alguma mudança na lei, se é que já não houve.
Não queremos, com isso, dizer que estamos de acordo com a disciplina partidária rígida, que valoriza e cristaliza o social/colectivo, enquanto fragmenta e esvazia o indivíduo e sua individualidade, fazendo com que o diferente na diversidade seja visto como anomalia e não como riqueza. Eis uma das razões porque não militamos em nenhuma organização partidária. Mas não queremos, também, com isso, desencorajar ninguém de o fazer. O que queremos dizer é que, uma vez assumido o compromisso partidário, o militante descontente deve procurar criar condições para desenvolver uma luta para uma ética libertária e uma moral igualitária, ou seja, para uma emancipação, no seio do partido em que milita; e, estando em desacordo com quaisquer preceitos, ocorrências ou desvirtualização de alguns princípios, antes corolários, ou concretiza essa luta pela emancipação no interior do partido ou se retira do seio do mesmo, abrindo mão do “mandato” que conseguiu em nome e no seio desse partido.
Um outro assunto que nós gostaríamos de abordar é o chamado “compra de consciência”.
A nosso ver, esse conceito é equivocadamente usado por alguns políticos. Cremos que, ao verificar-se o fenómeno adjacente a esse conceito, devia-se falar de compra da “não-consciência” e não de compra da consciência. A consciência é o reconhecimento de si mesmo, do ser-para-si, das determinações que constituem o indivíduo. Por outro lado, a não-consciência do ser-para-si é o ser-em-si, é o não rever-se em si mesmo, é alienação. Aí sim, talvez, possamos falar de “compra” ou “venda” da “não-consciência”, que não é o não-ser, mas o ser-em-si.
A consciência resulta de um movimento interno particular engendrado pelo movimento da actividade significada, actividade verdadeiramente humana. Ela é produzida nas relações sociais, é entendida como processos de significação, ou seja, formas que apreendem o real mediado por categorias e conceitos, cujos significados mudam ao longo do desenvolvimento. Ela é a concretização histórica do psiquismo e engendrada pelo significado e sentido pessoal, que têm na actividade sua própria génese e determinação dinâmica.
A consciência individual de uma pessoa concreta é o conjunto móvel das suas ideias, concepções, interesses, qualidades emocionais e cognitivas, que resulta da interacção complexa entre a sociedade e o meio concreto específico ao indivíduo (“micro-meio”). É a articulação do geral e do particular na vida dos homens. Além disso, a consciência individual inclui a autoconsciência, isto é, a consciência, pelo homem, de si próprio, da sua atitude em relação ao mundo, à sociedade, classes e colectividade; a capacidade de compreender e avaliar os seus pensamentos, sentimentos, interesses, intenções e feitos, o seu lugar e papel na vida social, o que contribui para o ulterior aperfeiçoamento dos seus hábitos de trabalho, para a formação e desenvolvimento de si e da sua participação no desenvolvimento da sociedade.
A relação entre a consciência social e individual é a manifestação concreta da dialéctica do geral e do particular na vida espiritual da sociedade. Assim como todo o geral existe no particular, também a consciência social se manifesta por meio da consciência individual, pois só uma pessoa particular, uma pessoa concreta tem a capacidade de sentir e raciocinar. Ao mesmo tempo, a consciência individual existe apenas em relação à consciência social. A consciência social e individual constituem uma unidade: têm a mesma fonte — existência concreta dos homens, a mesma base — a prática, e a mesma forma e modo de expressão — a linguagem. Ao mesmo tempo, nesta unidade existem importantes diferenças: a consciência social é a reprodução da realidade de forma mais profunda e multilateral do que a individual. Abstrai-se de muitos traços específicos concretos da consciência dos indivíduos, assimilando apenas os elementos de significação geral da consciência individual.
Então como falar da “compra/venda de consciência” dos caboverdianos, ao mesmo tempo em que se fala de grande maturidade política dos caboverdianos.
Espero que essa maturidade se referencia comparativamente à maturidade política dos caboverdianos nos primeiros anos após a independência e até mesmo há dez anos. Pois, de resto, os discursos de muitos dos representantes do povo, na casa parlamentar e fora dela, demonstram tanta falta de maturidade política, que não é eticamente possível nem justo exigir isso aos representados. Mas a isso já estamos acostumados. É como num jogo de futebol: o vencedor normalmente não contesta o árbitro por mais que este tenha errado contra ele.
Caso haja oportunidade retomaremos esse assunto.
Victor Manuel Fortes