segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Adriano Moreira: "O mercado transformou-se numa espécie de credo que ameaça o Estado providencial"

A Europa deve deixar de lado os complexos hegemónicos, combater os seus próprios demónios e não repetir erros do passado neste momento em que a situação mundial atinge patamares de supercomplexidade. A leitura é do professor português Adriano Moreira, que no último sábado recebeu o primeiro título de Doutor Honoris Causa atribuído pela academia em Cabo Verde. O antigo ministro do Ultramar do regime salazarista realça que o mercado transformou-se numa espécie de credo, que ameaça o bem-estar global. O perigo está por todo o lado e no meio de tantas incertezas, Adriano Moreira destaca que Cabo Verde é chamado a desempenhar um papel estratégico na segurança do Atlântico. Neste exclusivo ao asemanaonline, o professor nega que tenha autorizado a reabertura da colónia penal do Tarrafal, mas os documentos provam o contrário.

Adriano Moreira:
Por: João Almeida
Essa crise por que passa a Europa pode significar o fim da economia liberal ou das políticas ditas de direita?
Em primeiro lugar, devo dizer que a situação mundial já corresponde não ao sentido da complexidade, mas da supercomplexidade. Julgo que hoje poucos analistas e académicos serão capazes de dar uma visão racionalizada daquilo que está acontecer no mundo. Em relação à Europa eu julgo que se deve ter em conta o seguinte: depois da conferência de Berlim de 1885 e da decisão que os europeus tomaram de fundar ou terminar aquilo que se chama império euromundista, os discursos dirigidos aos parlamentos os governos dizem claramente que devem dominar as matérias-primas, os mercados dos produtos acabados, as energias. Essa posição de hegemonia originou duas guerras, que foram chamadas mundiais mas que realmente foram guerras civis dos europeus. Foram os demónios interiores europeus que provocaram esse cataclismo com sacrifícios para a humanidade crescentes. A Europa logo a seguir perdeu essa hegemonia.
Está a querer reificar a tese de que a soberania do Ocidente na geopolítica mundial acabou?
É isso, porque a crise não é da Europa. Todo o ocidente está abrangido por esta alteração. O que aconteceu, a meu ver, com a Europa? Eu julgo que no processo europeu houve alguns erros. Em primeiro lugar, a população dos estados europeus em geral não participou nas políticas, só conheceu as políticas pelos efeitos. Em segundo lugar, os parlamentos nacionais escassamente participaram na evolução das políticas europeias. Finalmente, o alargamento da Europa nunca foi precedido de estudos de governabilidade, não há estudos prévios de fronteiras amigas. De todo o modo a circunstância da crise mundial em que nós estamos tem um efeito em relação à Europa: se o senhor ler os relatórios do PNUD do século passado – que foi ontem - vai ver que a fronteira da pobreza que divide as sociedades ricas, afluentes e consumistas das sociedades pobres passava ao sul da Saara; neste momento com o turbilhão do mediterrâneo a fronteira da pobreza ultrapassou o mediterrâneo e portanto há um grande risco para a Europa é que se acentue a uma divisão entre ricos e pobres…
Mas é o fim da economia liberal?
Acho que temos de ser prudentes nisso. Em primeiro lugar, a unidade da Europa tem de ser preservada. Julgo que este é o primeiro grande desafio. Se se deixar aprofundar a diferença entre povos ricos e povos pobres com esta movimentação da fronteira da pobreza e isso afectar o processo europeu, a Europa deixa de ter voz no Mundo e isto tem de ser evitado. Portanto, o primeiro grande desafio é manter a unidade europeia, com alterações que forem necessárias, preservando o Euro porque se o Euro explodir a unidade europeia não poderia manter-se. É uma questão vital para os países mais débeis porque é a unidade europeia que lhes pode manter num caminho de desenvolvimento sustentável.
Órgãos institucionalizados de governança mundial secundarizados
A crise na Europa seria a consequência de certo eurocentralismo e não abertura da economia europeia a novos mercados como África ou ao chamado BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China)?
Não, pelo contrário. A Europa é hoje uma economia aberta. Aquilo que penso que foi grave e sério é que os órgãos institucionalizados de governança mundial estão a ser secundarizados. Por exemplo, essa crise económica hoje já global, mas nunca viu convocar o Conselho Económico e Social das Nações Unidas, nem Assembleia Geral das Nações Unidas, contudo viu aparecer um organismo chamado G20 – e que eu já chamo muitas vezes G2 mais 18 – que faz directivas que imagina que pode orientar o G194, ou seja, a Assembleia-Geral das Nações Unidas. Estabeleceu-se também uma espécie de credo do mercado e esse credo não tem regulação porque não há órgãos que a estabeleçam. O mercado deve ser livre, mas precisa de ser regulado, porque há princípios, há ética… Mas não há nenhuma regulação internacional e é por isso que a ordem mundial precisa ser revista.
Concorda com a ideia de que para a Europa manter-se enquanto grupo deve haver um núcleo duro e sem este núcleo o Euro não sobrevive?
Acho que ainda é cedo para falar isso. Em todo o caso qualquer que seja a organização decisória - naturalmente o voto dos países não vai ser igual - é necessário não atingirmos aquilo a que chamamos o directório porque na Europa sempre que houve directório, houve quebra da paz.
Esta ideia de directório remete-nos à tese de colonização por parte da Alemanha, como escrevem alguns jornais europeus, a propósito das dívidas dos bancos portugueses e espanhóis para com a banca alemã...
Acho que em relação ao futuro a única coisa que nós podemos saber é isso: salvaguardar a unidade da Europa. Agora para haver essas decisões é preciso ter presente que vivemos numa época de supercomplexidade. O que significa que juízo de certeza ninguém pode fazer; juízo de probabilidade arriscam-se a ser enganados e juízo de possibilidade é o que está ao nosso alcance. E o que mantém a coesão desses juízos é o objectivo de salvaguardar a unidade da Europa, com pequenos passos, passos seguros e com um limite. Nada que se aproxima do modelo do directório.
O desaparecimento do estado social é deitar a esperança pela janela
Como comenta o facto que essa crise de mercado ter deflagrado em Espanha, Portugal, na Grécia sob governos de esquerda. Diluiu-se a fronteira esquerda/direita, o que vale é o capital?
O que acontece é que a interdependência mundial é suficiente para que a circunstância seja coactiva de qualquer tido de governo, seja esquerda seja da direita. O que acontece neste momento é que a circunstância envolvente coage todos os governos. Agora a resposta dos governos é que podem ser diferentes, com acento tónico num lado ou acento tónico noutro lado. Para mim, há um limite que é o estado social. Acho que o desaparecimento do estado social é deitar a esperança pela janela. O estado social tem de estar presente neste processo evolutivo. Já a caracterização ideológica dos governos está no tal regime da complexidade.
Li há dias a tese de Benoît Hamon, do Partido Socialista francês, de que uma parte da esquerda europeia, à semelhança da direita, deixou de pôr em causa que é preciso sacrificar o Estado providencial, do bem-estar social, para estabelecer o equilíbrio orçamental e agradar aos mercados. Como vê isso?
Não há dúvida de que o mercado transformou-se numa espécie de credo. E o credo do mercado até uma voz: fala pelas estatísticas. E em relação ao estado social julgo que tem duas contribuições fundamentais: uma é a doutrina social da igreja e outra é o socialismo democrático porque convergem em muitos pontos. As pessoas críticas muitas vezes não reparam que as constituições quando estabelecem o estado social estabelecem uma principiologia. Não são disposições imperativas; dizem por exemplo o ensino deve ser tendencialmente gratuito, a saúde deve ser tendencialmente gratuita, porque tem que haver uma relação entre o que se faz e a capacidade financeira de o fazer. Portanto se há uma crise é evidente que a capacidade financeira de enfrentar o estado social diminui. Agora o que seria um erro era eliminar a principiologia porque eliminá-la é deitar a esperança dos povos pela janela. Temos de conseguir responder à crise e reabilitar a capacidade que se perder em muitos aspectos.
Essa resposta tem sido de cortes, de políticas de austeridade, de medidas restritivas, mas os cortes nos salários não podem prejudicar ainda mais a economia real?
É evidente que neste momento - quando o objectivo fundamental para os governos é equilibrar os orçamentos - as restrições que estão a ser feitas vão ter um aspecto negativo na economia real. Por isso exige muita sabedoria porque tem de se equilibrar os orçamentos, mas fazê-lo de maneira que os efeitos negativos sejam menos gravosos possíveis. Sacrifícios já estão a ser inevitáveis, designadamente na parte mais pobre da Europa em que eu incluo Portugal, mas temos de passar por este período de sacrifícios sem deitar fora os objectivos.
Como vê a relação da Europa com o grupo ACP (Grupo de Estados de África, Caribe e Pacífico), no novo contexto?
A Europa tem que remeter para a história a hegemonia e neste momento reconstruir uma relação, sempre no respeito pela contratualização, pelo direito internacional… É um novo paradigma de que ainda andamos à procura.
Já que é um dos promotores da parceria especial entre Cabo Verde e a União Europeia, como vê o futuro dessa parceira?
Como sabe, há uma organização de segurança no Atlântico Norte (NATO), mas neste momento é preciso pensar na segurança no Atlântico Sul. Devemos articular a segurança do Atlântico Norte com a do Atlântico Sul. E digo articular porquê? Porque nem todas as soberanias que estão no Atlântico Sul são de língua portuguesa, mas o número de soberania de língua portuguesa é extremamente importante. E justamente Cabo Verde está na linha divisória e vai ser chamado a responder a esse desafio porque a insegurança do mar está a aumentar, a pirataria volta a aumentar e a circulação marítima vai aumentar pois é mais barata do que os outros meios de circulação… Portanto, isso exige essa organização. O papel de Cabo Verde – tal como a Madeira, Açores, Canárias – é estratégico. A circunstância vai exigir.
E como vê Cabo Verde hoje?
Vejo que o desenvolvimento, sem esconder as carências, é visível. Sobretudo é notável a imagem internacional de Cabo Verde em comparação com a de outros países recentemente independentes. A imagem de credibilidade, de respeito, de cumprimento dos deveres internacional é muito sólida.
Duas faces de um homem: o intelectual que acredita no nível diferenciado do cabo-verdiano; o ministro do Ultramar que autorizou a abertura de campo de trabalhos forçados em Chão Bom
O professor tem dito que aposta no nível cultural do cabo-verdiano, tanto que a Cidade da Praia teve um liceu com o seu nome. Sempre acreditou nessa evolução positiva de Cabo Verde de que acaba de falar desde a independência?
Desde e antes. Eu até, num momento em que era difícil, cheguei a defender que Cabo Verde tinha de ter o mesmo estatuto de que os Açores e a Madeira. Nesse tempo era um passo importante, nunca foi possível na altura conseguir as razões e as oportunidades necessárias, mas há documentação sobre isso. Tive sempre uma grande intimidade com os problemas de Cabo Verde e era evidente que o nível cultural era diferente e Cabo Verde nunca foi um território de indigenato.
Mas há a polémica reabertura da Colónia penal do Tarrafal que tem dado muito que falar nos últimos dias?
O que eu digo é que o Tarrafal estava fechado, quando fui ministro. Por isso, acho que não tenho de me meter na opinião destas pessoas e aconselho a estudar a história do Tarrafal.
História: Assinou a portaria sobre o campo de trabalho forçado de Chão Bom
Apesar de dizer que não tem nada a ver com a colónia penal do Tarrafal, uma portaria de 17 de Julho de 1961 comprova que, enquanto ministro de Ultramar do regime salazarista, Adriano Moreira autorizou a abertura de um campo de trabalho forçado em Chão Bom. O registo histórico está publicado no Boletim Oficial.
Justamente por isso muitos cabo-verdianos questionam a atribuição do Doutor Honoris Causa a Adriano Moreira, ainda que a Universidade do Mindelo justifique que o título foi atribuído ao académico. Não se pode esquecer que por trás do professor há o homem, o político que foi ministro de um dos regimes políticos mais fechados do Ocidente cujo acto afectou negativamente estas ilhas.

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