segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A “Blasfémia” do Primeiro-Ministro 13 Fevereiro 2012

Quem duvida que a sociedade cabo-verdiana é violenta? Eu não, e digo-o sem quaisquer rebuços, porque o máximo que me pode acontecer é sofrer uns quantos insultos logo que, domingo à noite, este artigo for colocado online, submetendo-me ao escrutínio da soez verbosidade com que esta mesma sociedade, que agora se indigna por ser considerada violenta, não deixará de mimosear-me.
Por: Orlando Rodrigues

A “Blasfémia”  do Primeiro-Ministro
Mas o primeiro-ministro não! Enquanto tal, não tem nem o direito de constatar que a violência passou a ser um traço característico das nossas ruas, bairros e cidades e uma marca intrínseca da nossa vivência comum, e muito menos de o afirmar publicamente, sob pena de incorrer numa blasfémia política ou num crime de lesa-sociedade.
Afinal, em que ficámos? Bastas vezes, anteriormente, ouvimos José Maria Neves minimizar a dimensão da insegurança e da violência urbanas que nos assaltam diariamente, tendo-o considerado, por isso, nessas ocasiões, um irresponsável completamente alienado de uma realidade que entra pelos olhos adentro.
TODOS CONCORDAM
Há muito pouco tempo, o Presidente da República, no seu discurso de retribuição dos votos de Ano Novo apresentados pela hierarquia da Polícia Nacional, dizia que as estatísticas criminais, que apontavam para uma diminuição da violência em 2011, não correspondiam à percepção de insegurança que a sociedade cabo-verdiana experimenta.
Na Assembleia Nacional, os debates protagonizados pelos deputados e pelo Governo, e lembro-me perfeitamente que o último “Estado da Nação” não passou ao lado dessa matéria, transmitem sempre a ideia de uma violência desmedida que tende a ganhar terreno em Cabo Verde.
Mais recentemente, líderes religiosos como o Bispo de Santiago e o Superintendente da Igreja do Nazareno também chamavam a atenção para a crescente gravidade da situação, dando a entender, por outras ou com mais palavras, que a sociedade cabo-verdiana está contaminada pela violência.
Também na família, no trabalho, na escola, nos bares e cafés e na rua, a violência é tema recorrente, e não há ninguém que opine sobre o assunto que não considere que está a atingir níveis incomportáveis. Em resumo, concordamos todos com a existência, na sociedade cabo-verdiana e nas nossas atitudes quotidianas, de uma forte carga de violência, mas indignamo-nos profundamente quando alguém nos atribui o adjectivo que qualifica a condição de quem a pratica. Nisso reside, pois, a perversidade da situação.
RECONHECER O ÓBVIO
E a verdade é que os que nunca foram alvo de um assalto conhecem seguramente alguém próximo que já foi vítima do fenómeno dos chamados caçu-bodi, e, pelo menos na cidade da Praia, poucas famílias se podem gabar de não ter pelo menos um membro que não tenha sido já agredido, roubado ou violentado na sua integridade. Isto para não falar já dos homicídios que ocorrem, com frequência quase diária, entre nós, com todo o tipo de motivações, a maior parte delas vergonhosamente risíveis.
Eu considero, enquanto cidadão, que os políticos têm o dever de pôr o dedo na ferida e chamar as coisas pelo seu nome, e não penso que isso seja uma prerrogativa sagrada da oposição.
Vindo de quem vem, a afirmação de que a sociedade cabo-verdiana é violenta tem um enorme peso, porque significa o reconhecimento de uma realidade atroz, que já nada nem ninguém consegue escamotear.
No meu entender, só assim, quando quem teria interesse em minimizar uma situação inconveniente vem a público expô-la cruamente, conseguiremos fazer alguma coisa para o seu combate, porque é um sinal inequívoco de que a solução para o problema está a ultrapassar os recursos e as competências dos poderes públicos, passando a interpelar a sociedade no seu todo.
A comunidade nacional não pode, em caso algum, esgrimir falsos pruridos morais e indignar-se quando um dos seus membros, seja ele quem for, afirma que somos violentos e que precisamos conter-nos nos limites da tolerância e do respeito mútuo.
É que o anátema do culto da violência não pode recair apenas sobre certas pessoas e em bairros localizados, de forma hipocritamente conveniente, dos nossos centros urbanos, quando ela está bem presente nos lares, onde vai corroendo a harmonia das famílias, e igualmente no trânsito rodoviário, nas relações de trabalho, nas redes sociais, na comunicação social e no discurso político, onde se manifesta através de uma verborreia aviltante quase sempre consentida e muitas vezes incentivada.

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