Há uns bons anos publiquei algo sob o tema, mas com tonalidade humorística de malícia sem maldade, e, no meio da actual baralhada política em que se vive, após a falência do comunismo soviético, da crise económico-financeira global que arrasa o mundo e da exaustão ou desvio mafioso do neoliberalismo, que motivaram a convicção da necessidade urgente de se encontrar uma alternativa democrática diferente daquelas até agora ensaiadas para a gestão do mundo, sou tentado a revisitar a política, acompanhado de um centrista, Jean-François Revel, mas com recurso a outros pensadores não comprometidos com a via neoliberal.
Por: Arsénio Fermino de Pina
Os meus leitores devem estar lembrados da minha abordagem do pensamento de Alexis Tocqueville, pela mão do professor João Carlos Espada, da sua previsão - não realizada - de a sociedade se tornar democraticamente totalitária por força da concórdia entre os cidadãos que a compõem. E não se realizou por a paixão pela igualdade como motor principal da democracia na visão de Tocqueville acarretar a uniformidade e, também, se basear na paixão pela liberdade, a qual conduz à diversidade, à fragmentação, à multiplicação de singularidades.
Foi também Tocqueville que previu, quase como bruxo, por não ter vivido isso, que uma sociedade luta mais contra a autoridade quando o nível de satisfação das suas necessidades for mais elevado. Dito de outro jeito, as reivindicações tornam-se mais frequentes e agressivas à medida que já forem amplamente coroadas de êxito, e, sobretudo, quando a esperança de conquistar vantagens, sempre superiores, não parecer ilusória, o que pressupõe uma aquisição substancial de prosperidade e de liberdade que levam os cidadãos a ser ávidos de regalias e da conservação de direitos adquiridos, em troca das quais aceitam cada vez menos obrigações.
Essa “lei” de Tocqueville encontra excepção no Terceiro Mundo onde as insurreições são mais vezes desencadeadas por um início de modernização, de melhoria, e pela convicção de existirem meios melhores de vida. Devemos, no entanto, ter em conta que esta “lei” parece tanto mais válida quanto mais complexas as sociedades e quando os cidadãos puderem dialogar sem temor com uma administração e um Estado eficazes ou supostamente tal, baseados numa tradição democrática. Ela requer, com efeito, que a sociedade civil possa ter força para contestar o Estado, se tenha tornado mais forte do que este ou, pelo menos, que tenha força suficiente para ser respeitada e temida pelo Estado. Tais condições não estão reunidas, como bem sabemos, em regimes totalitários, onde o Estado ou o Partido é tudo, a sociedade civil, nada; bastas vezes o poder é cego, surdo e mudo e faz cegos, surdos e mudos os que acriticamente o servem ou se lhe submetem, assemelhando-se estes aos três macacos de olhos, ouvidos e boca tapados, símbolos da felicidade na cobardia; a estagnação económica e a esclerose social não estimulam nenhuma esperança; a inexistência das liberdades anquilosa a propagação dos descontentamentos. Essa a razão da “quietude” das populações na China, Coreia do Norte, Vietname e noutros países de regime comunista, e da queda, por podridão interna, do comunismo na União Soviética e países satélites.
A tirania da maioria, de que falámos noutro artigo relativamente à última fase e queda do governo do MpD nas nossas bandas, é hoje geralmente referida entre os males contra a qual a sociedade precisa de estar de atalaia, até por ter por instrumento as autoridades públicas. Há, certamente, um limite na ingerência legítima da opinião colectiva sobre a independência individual; e achar esse limite e mantê-lo contra a usurpação é tão indispensável para o andamento das actividades humanas como a protecção contra o despotismo político, segundo nos diz Stuart Mill no seu célebre livro Ensaio Sobre a Liberdade.
Possuo os ideais e os valores da esquerda, em particular o respeito do outro e a procura obstinada do interesse geral, e quem me conhece ou lê não tem dúvidas a esse respeito. Ser de esquerda é essencialmente uma postura de vida, uma prática, não um simples pensamento, uma ideia ou um ideal. Não basta interpretar o mundo; o que é necessário é transformá-lo. E são as práticas correctas que transformam o mundo, como bem escreve o Padre Mário de Oliveira no Novo Livro do Apocalipse ou da Revelação.
Nos meus escritos ponho a nu, bastas vezes, tanto as falsidades e patifarias da esquerda como da direita, embora mais desta por a conhecer melhor e ter sofrido na pele a sua má prática. Dizia-me o amigo e colega Manuel Boal, ele que conhece tão bem ou melhor do que eu esses regimes por ter estado na luta armada de libertação e contactado alguns desses energúmenos da governação, embora, talvez por pudor nacionalista, nunca tenha botado a boca no trombone, ao referir-se às minhas charges contra certos governantes africanos, que sou mauzinho com eles. Eu diria, realista, sem eufemismos e com alguma ironia e dose de caricatura para atingir melhor as pessoas. Mas creio que os que pensam e actuam como eu têm tendência a falar mais das patifarias e crimes do capitalismo do que do comunismo, e dos regimes de partido único que estiveram em moda em África e conhecemos no início da nossa independência com a arrogância e intratabilidade dos seus dirigentes, presumindo que isso se deve, particularmente, ao facto de, durante muito tempo, termos desconhecido essas más práticas e crimes ou não acreditávamos neles por nos serem relatados por aqueles que nos coartavam toda a liberdade de informação e impediam de as conhecer de visu ou da boca daqueles em quem confiávamos – isso no tempo do fascismo -, sem falar numa certa tendência amnésica e memória selectiva para acontecimentos que beliscam os nossos ideais mais profundos.
Como hoje estou na companhia de Revel, personalidade do centro e direita moderada, sou tentado a acompanhá-lo a desvendar alguns aspectos da face feia, mesmo horrorosa da política dos vermelhos, isto é, do comunismo. Não é que menospreze os comunistas sinceros, idealistas que animaram a minha juventude e idade madura. Reservo-lhes uma grande admiração por terem corrido sérios riscos e sofrido torturas do fascismo e nazismo, sem outra motivação que não a da luta pelo interesse geral e seus ideais visando a implantação de uma prática supostamente favorecedora da classe trabalhadora, que não aconteceu, por uma pequena minoria ter monopolizado a vitória e exercido o poder sacanamente em nome do povo nos países onde se impôs o comunismo.
Historicamente, a democracia liberal apareceu nos países do Norte em pleno início do desenvolvimento económico, quando o Estado já se tinha imposto. Cronologicamente, houve um Estado moderno, em seguida a economia moderna, e, finalmente, a democracia liberal.
Quem estiver tentado a considerar-me reaccionário por desmascarar as vilanias de que irei falar, que se recorde dos célebres artigos de Eurico Berlinger, secretário-geral do Partido Comunista Italiano, em 1973, depois da morte de Salvador Allende, sobre a necessidade do “compromisso histórico” com o centro e a direita moderada, compromisso que talvez tivesse evitado o regime odioso de Pinochet.
As teorias comunistas/socialistas são aliciantes e estimulantes, mas as respectivas práticas, onde foram ensaiadas, infelizmente, bastante ruins, porque um partido minoritário e a sua nomenklatura se apossam do Estado e governam autística e abusivamente em nome do povo, cavalgados no seu lombo. Afinal, democracia é mais uma prática (ruim no comunismo) do que um regime…
O totalitarismo é a morte da política, da sociedade civil e da cultura. Diante da morte da sociedade civil que é o totalitarismo, existiram e existem inúmeras formas de sociedade que não eram nem são democráticas, num pequeno número de países, democráticas no sentido em que o entendemos hoje, mas que não eram ou não são a morte, não a negação do Homem, nem de toda a liberdade, e que, pouco a pouco criaram a civilização de que somos hoje os beneficiários. Até alguns regimes autoritários, do tipo latino-americano e africano se mitigaram, transpondo a fronteira para uma aproximação com a democracia, a pluralizar-se e abrir-se.
Em contrapartida, o comunismo, à semelhança de um barco, não pode abrir-se sem se afundar, o que aconteceu com a URSS, com a abertura de Gorbachev: como diria um patchê, s´ês abri bezil ês ta zvasiâ. A liberdade e democratização do comunismo levam à sua destruição. Esta foi a razão por que Estaline não aceitou o Plano Marshall, embora, num primeiro tempo, estivesse interessado nisso. Ao saber que os EUA tinham colocado como condição para a abertura de créditos que os países beneficiários se concertassem, se pusessem de acordo entre si para coordenar as suas reconstruções e harmonizar as economias, proibiu aos países satélites a aceitação do Plano. Tanto a Rússia como os seus satélites tiveram de se contentar em gerir a penúria.
Uma pequena abertura democrática na China de Xiaoping deu o que sabemos iniciada na Praça de Tianamen. A insurreição de Budapeste e a abertura na Checoslováquia deu na invasão pelos tanques russos, mortes e destruições maciças para que o comunismo não soçobrasse. Na Coreia do Norte, o chefe é deus e as leis, dogmas; ninguém contesta o chefe, nem o filho que lhe sucedeu numa modalidade monárquica em regime dito republicano popular. A não abertura democrática em Cuba encontra o seu álibi no bloqueio americano e a Jugoslávia desfez-se quando aí chegou a liberdade. Hemos de convir que a democratização do comunismo leva à sua destruição.
Não obstante as críticas dirigidas ao capitalismo – e podemos, actualmente, fazer críticas tanto ao comunismo como ao capitalismo, em quase todo o sítio, sem ir parar à cadeia, à Sibéria nem aos campos de reeducação, embora ainda protestemos contra a falta de liberdade de expressão – foi o capitalismo industrial, o primeiro e o único modo de produção que tirou os homens da penúria e que pode dela tirar os que ainda a sofrem. É bem de ver que os países onde se desenvolveu o capitalismo industrial, desde o século XVIII, se encontram igualmente entre aqueles onde floresceu a democracia moderna, embora nem todos se tenham mantido constantemente fiéis à democracia. Não há dúvida de que o capitalismo sabe criar riqueza embora não consiga reparti-la, enquanto o comunismo tem sérias dificuldades em criar riqueza, sabendo, no entanto, distribui-la…, geralmente distribuindo a penúria na falta de riqueza.
Raramente se comparam êxitos e desastres capitalistas e comunistas. Os êxitos económicos dos países do Terceiro Mundo que conseguiram escapar ao subdesenvolvimento como a Formosa, Singapura, Coreia do Sul ou Indonésia não são confrontados com a penúria do socialismo de Estado. Cito, por exemplo, um país africano, que por sinal lutou duramente pela sua independência e criou grandes expectativas quanto à via socialista, a Argélia, país riquíssimo em petróleo e gás e com excelentes condições para desenvolver a agricultura, que uma gestão danosa e corrupta socialista levou à miséria e ao desespero a ponto de favorecer movimentos contestatários religiosos e guerra civil, em comparação com as situações económicas da Tunísia e Marrocos, seus vizinhos reaccionários, onde se vive relativamente bem, em segurança e onde os argelinos vão comprar, quando conseguem viajar, tudo de que não dispõem no seu país. Até parece que a burocracia socialista consegue levar, duradouramente, a carestia a países férteis.
Para os esquerdistas não me darem na tamborona, evitarei contabilizar as chacinas e crimes de Estaline de 1929 a 1934 (dezenas de milhões de mortos), de Mao (1959) aquando do seu “grande salto para a frente” (mais de sessenta milhões de mortos), sem contabilizar os da “Revolução Cultural” e da invasão do Tibete, e dos Khmers Vermelhos (1/4 a 1/3 da população do Cambodja), o que é intrigante, dado que alguns líderes Khmers se formaram em França.
Se fosse possível a simbiose, o casamento do capitalismo com o comunismo, isto é, a utilização em benefício dos cidadãos, fundamentalmente daqueles que trabalham e criam riqueza, da capacidade criadora de bens do capitalismo com a da redistribuição do socialismo/comunismo, teríamos a felicidade sobre a Terra. Mas, para isso, teríamos necessidade de políticos carismáticos, íntegros, competentes, honestos e dialogantes que servissem de referência e pudessem ser seguidos, capazes de mobilizar os cidadãos e de gerir os negócios, subordinando estritamente a economia à política – ao agir económico compete produzir riqueza, ao político cabe-lhe a redistribuição -, regulamentando, controlando e vigiando de perto a economia de modo a evitar a proliferação de especuladores e manipuladores das finanças como os que desencadearam a presente crise económico-financeira e social global, cujo combate os actuais dirigentes, autênticos eunucos políticos, hesitam em empreender, os quais, mais facilmente ferram esporas à montada (povo) e lhe apertam mais a cilha, do que umas valentes e merecidas chicotadas aos lobos (os que manipulam a economia e especulam com as finanças) que vão mordendo as pernas do povo, na iminência de até atirar o cavaleiro (Estado) ao chão com a morte da montada, o mesmo é dizer, de levar à nossa ruína total.
Parede, Maio de 2010 (Pediatra e sócio honorário da Adeco)
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