Lei da violência doméstica preocupa juristas: Prazos impraticáveis e excessiva vitimização O sistema judicial poderá sofrer um colapso por causa dos prazos impostos pela lei da Violência Baseada no Género. Juristas e Procuradores mostram‑se apreensivos com os danos colaterais que o diploma vai ter nos Tribunais mas também nas famílias. As Mulheres Juristas já convocaram os magistrados para um debate, na cidade da Praia.
A aplicação da lei da Violência Baseada no Género (VBG) poderá vir a sobrecarregar as Procuradorias, congestionar os Tribunais e gerar situações melindrosas no seio das famílias cabo‑verdianas. A legislação, que vigora desde 11 de Março último, visa dar tratamento urgente aos casos de agressão doméstica, porém alguns magistrados começam a temer pelos danos colaterais que poderá provocar tanto nos agregados como no próprio sistema judicial.
As questões levantadas são de vária ordem. Elas englobam desde a actual capacidade de resposta das Procuradorias, dos Tribunais, das autoridades policiais, dos serviços de saúde, etc., aos impactos que as medidas legais previstas podem ter na família, na sociedade. Isto sem contar com o esforço financeiro a que vai obrigar o Estado – que vai ter de apetrechar todas as ilhas de centros de acolhimento e casas de abrigo às vítimas. Mais: tem de ser criado um fundo, para auxiliar os ofendidos e as crianças envolvidas. Tudo isto no espaço de um ano.
“Estamos perante uma lei que tem um objectivo nobre, mas que nos provoca alguma apreensão. Doravante, a violência doméstica passa a ser um crime público. Isto significa que o procedimento criminal contra o suspeito tem lugar, independentemente de haver queixa; e as denúncias já podem ser feitas por qualquer pessoa. Mais: o processo tem tratamento urgente e prioritário, sendo inclusive mais prioritário que os casos de arguidos presos”, compara um magistrado do MP, salientando que, com a adopção desta lei as entidades policiais são obrigadas a comunicar ao Ministério Público todos os factos relacionados com violência doméstica de que tenham conhecimento, no prazo máximo de dois dias. E, por sua vez, o MP terá que apresentar o suspeito ao juiz para aplicação da medida de coacção, em apenas quarenta e oito horas. Ainda cabe a esta instância determinar que tipo de acompanhamento a vítima deve ter junto dos serviços sociais de apoio e apresentar ao Tribunal um pedido provisório de fixação de alimentos.
Com o assunto em mãos, o Tribunal tem o poder de determinar a saída imediata do arguido da casa onde reside com a vítima e accionar uma acção de alimentos. Não o fazendo, o juiz tem que elaborar um despacho “especialmente fundamentado” para justificar a sua decisão.
“Independentemente das demais medidas aplicáveis, presume‑se sempre necessária a aplicação da medida de proibição de permanência em casa de morada de família, quando arguido e vítima habitem a mesma residência, enquanto cônjuges ou em condições análogas”, estipula, entretanto, a mencionada lei. Esta estabelece ainda que o julgamento dos processos deve decorrer no prazo máximo de dois meses após a data da ocorrência.
Faca de dois gumes
Para o citado magistrado, tudo isso cria um “quadro sensível”, que pode levar a Justiça a errar. Ressalva que, na sua percepção, o prazo de 48 horas imposto na lei deve começar a ser contado a partir da constatação da infracção pelo Ministério Público, ou a Polícia Nacional, e não para seguir uma mera denúncia. “Isto para se evitar que pessoas mal intencionadas venham a usar esta lei para prejudicar outrem, sabendo de antemão que as autoridades terão que agir à pressa; e todos sabemos que a pressa é inimiga da perfeição”, realça a nossa fonte, que se mostra apreensiva com as consequências sociais desta lei, apesar de reconhecer a necessidade de se pôr cobro aos numerosos casos de violência doméstica, em Cabo Verde.
A urgência imposta pela lei para o tratamento da violência doméstica pode ser, na perspectiva de outro Procurador da República, uma faca de dois gumes. “A urgência é tanta que o Ministério Público pode ser obrigado a suspender uma audiência de julgamento se lhe surgir um caso destes de rompante”, elucida, relembrando que os crimes de violência doméstica vão disparar daqui para a frente, porque a denúncia já não depende apenas da vontade da vítima. E esta perdeu a capacidade de retirar uma queixa, mesmo que queira. Tratando‑se de um delito público, qualquer pessoa ou instituição que tenha conhecimento dele é obrigada a accionar as autoridades competentes. Estão especialmente consignados os médicos e enfermeiros que tenham dado tratamento a alguém vítima de maus‑tratos no seio da família.
Difamação, injúria e assédio
Outro aspecto há que, segundo um jurista, irá fazer disparar as estatísticas: é o facto de a Lei da VBG passar a enquadrar as ofensas verbais – como injúria e difamação –, as agressões físicas simples e agravadas e o assédio sexual, por exemplo, dentro dos seus parâmetros. Isto é, se uma dessas situações ocorrer no quadro do relacionamento conjugal ou parental, é tratado como tal. E, segundo este advogado que trabalha na ilha de Santiago, o grosso dos crimes cometidos no país relaciona‑se exactamente com ameaças, injúrias, difamação e ofensas físicas. “Esta lei vai exigir um esforço grande do sistema judicial, as Comarcas terão de estar adaptadas para poderem dar vazão aos casos de violência baseada no género. Caso contrário, esse dispositivo vai bloquear o andamento de outros processos também urgentes”, alerta.
Mas, por aquilo que apurou este semanário, nos próximo tempos será quase impossível uma adaptação das Comarcas às exigências desta lei. Isto, no entendimento de uma fonte fidedigna, iria implicar a disponibilização de mais magistrados às Comarcas onde esse género de crimes é mais frequente, quadro que ele descarta neste momento.
“O funcionamento das Procuradorias não pode ser condicionado a uma lei. Isto violaria o princípio da igualdade e da proporcionalidade imposto pela Constituição”, sublinha a nossa fonte, para quem será “missão quase impossível” os procuradores e juízes cumprirem os prazos de 48 horas impostos pela lei da violência doméstica. Salienta que, por lei, nenhum juiz pode suspender um primeiro interrogatório a um processo com arguido preso para realizar outro acto. E, na sua opinião, os magistrados do MP não devem dar prioridade a processos de violência doméstica sobre outros com arguidos presos, sob pena de estarem a ferir o princípio da igualdade e da proporcionalidade.
“Vir dizer que tudo é urgente quando há magistrados com dois mil processos pendentes é brincar. Ou teremos Procuradores específicos para este tipo de crime, o que é impossível, ou vamos ter que andar dentro daquilo que é humanamente possível”, afirma a nossa fonte, que tem dúvidas se a lei da VBG irá resolver os problemas da violência doméstica em Cabo Verde. “Nem tudo pode ser resolvido com o rigor da lei e as pessoas partiram de uma falsa ideia de que a nossa legislação não dava tratamento a esta questão. Temos que aplicar a lei, é claro, mas também é preciso ver qual será o seu alcance na sociedade”, diz, pois o seu receio é que as medidas aplicáveis venham a desestruturar ainda mais as famílias, quando o objectivo é o contrário.
Excesso de vitimização
Um dos alertas lançados pela comunidade jurídica é se esta lei, da forma como foi concebida, não vai estimular um excesso de vitimização. Isto porque a lei da VBG, contrariamente às demais existentes, centra a sua atenção na vítima, que é amplamente protegida. Ela tem todos os seus direitos salvaguardados, incluindo os laborais, e beneficia ainda de um amplo amparo do Estado. O processo tem tratamento privilegiado em todas as instâncias legais, mesmo no Supremo Tribunal de Justiça, em caso de recurso.
“É o primeiro diploma centralizado na defesa da vítima. Mas é preciso não vitimizarmos em demasia as mulheres, que são a parte normalmente mais frágil dos laços conjugais, porque pode dar espaço a situações de manipulação e de vingança”, entende um dos magistrados referenciados, que já começou a tratar casos de violência doméstica à luz da nova lei. Numa rápida análise, acredita que as repercussões dos casos que já tem em mãos podem ser negativas para a estabilidade das famílias envolvidas. E cito um caso caricato que chegou outro dia aos tribunais – um casal teve um grave desentendimento por causa da “birra” de uma filha de dez anos. Os pais começaram a discutir, o assunto ganhou proporções imprevisíveis e acabou dentro da Procuradoria. Agora o pai corre o risco de ser retirado da casa, quando essa não é a vontade do casal e tão pouco da criança.
Debate entre magistrados e mulheres juristas
A aplicabilidade da lei da VBG pelo sistema judicial vai ser alvo de um debate promovido pela Associação das Mulheres Juristas com um grupo de vinte magistrados, dez do Ministério Público e dez Judiciais, na cidade da Praia. Em princípio, várias das questões – levantadas nesta reportagem – deverão provocar uma ampla discussão nessa mesa‑redonda, que irá acontecer na próxima terça‑feira. O resultado dessa reunião é uma incógnita colocada no futuro, mas para já a jurista Maria das Dores, presidente da AMJ, e Filomena Amador, Assessora do Ministério da Justiça e Coordenadora das Casas do Direito, reconhecem que alguns dos aspectos suscitados pelos Procuradores têm a sua pertinência, nomeadamente a questão da capacidade do MP em cumprir os apertados prazos estabelecidos.
“A questão é pertinente porque, realmente, o número de denúncias dos casos de violência doméstica vai aumentar. A meu ver, esta lei traz algo positivo que é o facto dessa violência passar a ser tipificada como crime público. Mas não deixa de ser uma questão delicada”, entende Filomena Amador, que pretende ver de que forma o Ministério da Justiça pode ajudar na socialização deste novo diploma.
Este dispositivo legal, para a jurista Maria das Dores, é bastante ambicioso nos seus objectivos. Contudo, reconhece que a sua aplicação poderá enfrentar barreiras de ordem financeira, técnica e de disponibilidade de recursos humanos adequadamente formados. “Mas não deixa de ser uma lei sensata. A minha esperança é que consigamos aplicá‑la como deve ser”, diz a Presidente da Associação de Mulheres Juristas, para quem há muito trabalho à espera dos organismos competentes para a efectivação dos desígnios defendidos pelo diploma. Uma delas é a sensibilização dos funcionários das instituições públicas, nomeadamente dos médicos e enfermeiros, para a necessidade de estarem atentos aos casos de violência doméstica que dão entrada nos serviços de urgência.
A partir do dia 11 de Maio, os tribunais começam a julgar os processos de violência doméstica com base na nova lei. Isto porque, tratando‑se de processos abreviados, terão que ser resolvidos no prazo máximo de dois meses a partir da data da ocorrência. E deprende‑se que aquilo que não vai faltar nas salas de audiência serão casos de agressão verbal, física e psicológica, assédios e tentativas de violação sexual enquadrados como crimes domésticos.
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