As relações entre a ministra das Finanças, Cristina Duarte, e o Governador do Banco de Cabo Verde, Carlos Burgo, estão ao rubro. Depois do bate-boca público à volta do Orçamento Geral do Estado para 2012 numa autêntica “sabatina” sobre Finanças Públicas, o ambiente é de cortar à faca entre estas duas instituições que devem transmitir ao país e ao mundo um clima de estabilidade macro-económica.
A gota de água que fez transbordar o copo caiu na última terça-feira, quando Carlos Burgo resolveu esticar ainda mais a corda, ao impedir dois técnicos das Finanças de participar nas reuniões entre o Banco Central e uma missão do FMI, que se encontra em Cabo Verde. Um acto temerário de Burgo que, além de alterar uma prática de há largos anos, é reputado por analistas económicos como sendo de extrema gravidade. Um ex-responsável do Banco Central chega mesmo a vaticinar que, à luz da lei, este incidente dá à ministra razões suficientes para demitir o governador do BCV.
Está instalada uma profunda crise institucional entre o Banco de Cabo Verde e o Ministério das Finanças. Na origem, os números do Orçamento de Estado para 2012, que Cristina Duarte defende com unhas e dentes, e Carlos Burgo critica, pelo seu carácter “despesista”.
Mas a gota que fez transbordar o copo aconteceu esta semana, perante uma equipa do Fundo Monetário Internacional que está em Cabo Verde em missão regular de serviço. O governador do BCV, segundo fontes do A Semana, impediu dois técnicos do Ministério das Finanças de acompanhar as reuniões de trabalho entre o Banco Central e os técnicos do FMI, como, aliás, é prática há vários anos. A postura radical de Carlos Burgo, exactamente na presença de uma equipa daquele organismo da Bretton Woods, caiu mal junto do Ministério das Finanças, que a interpretou como uma reacção extrema à dura resposta de Cristina Duarte aos reparos feitos pelo governador do BCV ao OGE de 2012.
A governante, agastada com as críticas “inoportunas” de Carlos Burgo disse, nas vésperas do debate parlamentar sobre o OGE, em alto e bom som que “o BCV não precisa ensinar a missa ao vigário”. Mais, mandou dizer ao governador do BCV que é ela quem manda na política financeira do país.
Terá sido essa “boca” da Kity que levou Carlos Burgo a mostrar que também no BCV é ele quem manda, e barrou a entrada aos técnicos das Finanças que normalmente acompanham as reuniões entre o FMI e o Banco Central. O certo é que este incidente acabou por entornar o caldo, mergulhando de vez as duas instituições numa grave crise institucional, sem precedentes em Cabo Verde. O clima é de forte tensão.
Ataque e contra-ataque
Na verdade, os sinais de algum desacordo entre Cristina Duarte e Carlos Burgo começaram a surgir já nas projecções sobre o desempenho da economia cabo-verdiana para os próximos tempos. O governo perspectiva um crescimento de 6-7 por cento, enquanto o BCV revê esse indicador em baixa – entre 4 e 5 por cento este ano, havendo indícios de abrandamento em 2012.
Os pontos de vista diferentes das duas instituições acentuaram-se nas vésperas da aprovação do OGE, quando o governador do BCV criticou o “irrealismo” que rodeou a elaboração do documento. Ao apresentar o relatório sobre a Política Monetária nacional, Burgo disse ao país e a quem o quisesse ouvir, que o quadro orçamental para 2012 aponta para uma desaceleração das receitas fiscais, uma queda dos donativos, aumento das despesas correntes, redução das despesas de investimento. Tudo contribuindo também para a desaceleração da economia.
E de conta em conta, o governador do BCV veio publicamente recomendar uma moderação no recurso ao endividamento interno, única forma, segundo ele, de estabilizar as reservas sem penalizar o financiamento ao sector privado. Ou seja, entende Carlos Burgo que o recurso sistemático do Governo à divida interna poderá sufocar os privados nacionais, fragilizando, desta forma, a economia.
De desabafo em desabafo, o governador do BCV ainda faz correr tinta numa longa entrevista ao jornal Expresso das Ilhas e assinando artigos de opinião publicados nos jornais da praça onde vai dizendo que a política orçamental adoptada pelo governo nos últimos anos, o de 2012 em particular, tem sido expansionista. Pede mais “qualidade dos investimentos públicos para que possam traduzir-se no aumento do potencial de crescimento da economia”, e sugeriu cortes radicais nas despesas de investimento. Cabo Verde, segundo o governador do BCV, é um país de risco baixo, mas que se aproxima do nível de risco moderado, o que obriga a que “a política de endividamento e o investimento tenham em conta o risco acrescido”.
Em reacção, a ministra das Finanças garantiu que o programa de investimentos não vai parar porque, a acontecer, seria pior para Cabo Verde.
Embora admita riscos devido à crise internacional, Cristina Duarte disse não haver sinal de recuo dos parceiros internacionais: “Temos projectos financiados pelo Banco Africano de Desenvolvimento, com o Banco Mundial e a União Europeia, que não dão nenhum sinal da suspensão dos desembolsos”. Também no que respeita aos projectos financiados por Portugal, a governante garantiu que tudo continua como estava e que o governo português não deu nenhuma indicação de suspender qualquer programa ou financiamento.
“Portanto, o BCV não precisa ensinar a missa ao vigário”, concluiu Cristina Duarte. A frase, forte por sinal, não mereceu qualquer reacção pública do governador do Banco de Cabo Verde. Mas a resposta de Carlos Burgo não se fez esperar e veio de forma radical, rompendo com tudo o que pudesse restar de “djunta-mon” e coabitação pacífica entre as duas instituições: impediu os técnicos das Finanças de entrar no BCV e participar nas reuniões com o FMI. Um caso sem precedentes e que abriu uma enorme ferida entre o Banco Central e o Governo.
Ponto de ruptura
Para alguns analistas, as relações entre o Governo e o Banco Central devem ser sempre as mais cordiais e consentâneas, pois “o Banco Central é o instrumento de política financeira do Governo. O BCV é o principal fornecedor de dados ao Ministério das Finanças”. Entretanto, analisa um economista, os últimos acontecimentos fizeram com que Cristina Duarte e Carlos Burgo atingissem o ponto de ruptura.
“O que aconteceu dá à ministra das Finanças ene razões para propor ao Conselho de Ministros a demissão do governador do BCV, por interfererir nas políticas do governo – o BCV tem como função criar e garantir a estabilidade financeira do país, pelo que nunca o governador pode contestar ou criticar publicamente as políticas do governo. Isso é contradizer a função do Banco Central e constitui razão suficiente para provocar a demissão do governador com justa causa”, analisa um ex-governador do BCV.
O nosso interlocutor esclarece ainda que o governador do BCV “não pode fazer política, limita-se a executar as políticas financeiras adoptadas pelo governo”. “O governador pode até sugerir ou propor alterações ao Orçamento mas, internamente, e nunca na comunicação social. E Carlos Burgo cometeu essa gaffe de extrema gravidade porque em vez de criar estabilidade está a perturbar o sistema, dizendo ao mercado que o que o governo afirma é falso, o que não é de todo a sua função. O BCV, tal como INE, limitam-se a fornecer dados, sem os interpretar. Quem faz isso é o governo e os analistas. Portanto, agindo desta forma, Burgo deu motivos para Cristina Duarte o demitir com justa causa, alegando falta de confiança”, conclui esse analista, que já foi dirigente do BCV.
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