terça-feira, 2 de agosto de 2011

ais dois dedos de conversa sobre democracia

Com um ou outro pequeno retoque, vou apresentar-vos um artigo publicado em 1992 que, segundo presumo, não perdeu actualidade.

Por: Arsénio Fermino de Pina

Mais dois dedos de conversa sobre democracia
Sei, porque mo disseram veladamente, que há gente que não aprecia as minhas surtidas fora do meu campo profissional. Acontece que o meu ramo de actividades não é inato, mas, sim, adquirido; essas pessoas, que estimo, deviam aceitar, quanto mais não seja por simples dúvida metódica, que seja capaz de adquirir conhecimentos que não somente os da minha rama profissional. Outrossim, não o faço por gosto, mas porque sofri na pele as interferências de outros ramos na minha vida de Esculápio, e, mesmo privada. É por isso que possuo, por culpa alheia, um costado pelado recidivante em assuntos de índole não médica. Tenho necessidade, por vezes, de me desafrontar. Que me perdoem esses amigos pois alguns foram, até, os que me afrontaram outrora. De resto, as minhas charges nunca são pessoais: atiro para o monte e quem aí estiver e se sentir tocado, sôrê.
Enviei, recentemente, para publicação, um artigo sobre democracia, no qual me referia à dificuldade de falarmos e praticarmos democracia com saber de experiência feito, pelas razões que tentei expor. Com a licença dos leitores vou fazer mais uma pequena incursão por aquilo que todos nós conhecemos das limitações e fraquezas da democracia, das suas instituições e do aviltamento das suas premissas, em jeito de amigo da onça, um tanto provocatório, como abordagem desmistificadora, ao mesmo tempo estimulante do espírito crítico – a condição da inovação e uma forma minha de participação.
Os curiosos e desconfiados que não pensem que estou inventando; reúno em breve molho os ditos de alguns, que muito prezo, que mais me prouveram, de mistura com alguma contribuição pessoal. Somos o que ouvimos, vemos, lemos e sentimos. Partilho, pois, com os leitores, os benefícios obtidos e sedimentados através desses meios, após digestão e retida no meu celeiro mental. Outros poderiam fazê-lo melhor; só que, a maioria guarda para si os conhecimentos arrecadados, por egoísmo, laxismo intelectual, acanhamento, ou, mesmo, medo de assunção.
Vamos, primeiro, aos lugares comuns e premissas primeiras.
Sentimo-nos à vontade na abordagem do assunto e os leitores irão dar-se conta de que muitas ilações e situações descritas são da sua vivência passada e menos longínqua pois, os regimes que conhecemos e vivemos largos anos – o fascista e o da democracia participativa de centralismo democrático – sempre afirmaram que exerciam a vera democracia em nome do povo, e nós, os cidadãos comuns, conhecemos e sofremos muitas aberrações desse exercício democrático, sem outro remédio senão suportá-lo caladinhos (a chamada maioria silenciosa), barafustando na intimidade, ou com moderadas, cautelosas e dissimuladas investidas públicas (os chamados colaboracionistas críticos e críticos bem intencionados prenhes de bondade desarmada esta considerada por Saramago forma suicídio), e bem poucos berrando por afrontamento (os que foram parar à cadeia quando o berro escapava forte, ou ao desemprego, nos casos de disfonia, isto é, de voz rouca, desagradável, pouco audível). Quem se propõe falar de democracia terá, forçosamente, de abordar o poder político. Vamos tentar espiolhá-lo, respeitando, porém, uma certa distância para que a árvore não esconda a floresta, nem nos conspurcarmos.
A democracia tem como inimigo o totalitarismo. A sociedade é o reflexo das nossas ansiedades e angústias. Se os indivíduos forem capazes, por si próprios, de ultrapassar as suas angústias, constroem uma sociedade livre e democrática; se não forem capazes disso, são atraídos pela sociedade totalitária. Esta sociedade (a que conhecemos de ginjeira) permite ao indivíduo confundir-se com a massa e endossar ao Chefe, ao Guia Supremo, ao Líder Máximo, ao Partido, à Ideologia a responsabilidade e a trabalheira de pensar por ele e de resolver as suas angústias pessoais. A sociedade totalitária tem, ademais, o mérito aparente de apresentar respostas simples a questões complexas – respostas que, por vezes, até têm uma aparência científica. A última etapa dessa sociedade de massa é o campo de concentração, clínicas psiquiátricas, centros de reeducação, passando pela cadeia, nos quais os indivíduos deixam de existir como tais.
Estão a seguir-me? Prossigamos.
A democracia é o último tabu sobre o qual, dizem os políticos, não se deve interrogar. Ora, é por causa do mau funcionamento da democracia que os Estados modernos são invasivos da nossa vida. Os liberais (que estão na moda) são, bastas vezes, incoerentes, pois limitam-se a queixar-se da estatização sem se interrogarem sobre os mecanismos que conduzem a isso. O mal-estar das sociedades democráticas provém do facto de as palavras terem perdido todo o seu verdadeiro sentido, de tanto serem maltratadas. Na origem, os poderes do Estado eram, em democracia (contrariamente ao que se passava na monarquia absoluta), limitados pela constituição, pela lei e pelo costume. Mas deslizamos, progressivamente, para a democracia ilimitada: um governo pode, nos dias que correm, fazer tudo que lhe der na veneta sob o pretexto de ser maioritário. A maioria substituiu a Lei. A própria Lei perdeu o seu sentido; de princípio universal, no início, não passa, agora, de uma regra modificável destinada a servir interesses particulares em nome da justiça social. Esses políticos inventam cada termo! ..., como se social derivasse de sócio.
Ora, a justiça social é uma ficção, uma varinha mágica que ninguém sabe dizer, ao certo, em que consiste. Graças a esse termo vago, cada grupo se crê no direito de exigir do governo vantagens particulares. Na realidade, atrás da justiça social está simplesmente impregnado no espírito dos eleitores a generosidade dos legisladores e governantes para certos grupos. Os governos tornaram-se instituições de beneficência e de distribuição expostas a chantagem de interesses organizados. Os homens políticos cedem, de boa vontade, à distribuição de regalias em função da possibilidade de “comprarem” partidários e votos. Esta distribuição beneficia grupos isolados, enquanto que os seus custos são repartidos e suportados pelos contribuintes; assim, cada qual tem a impressão de que se trata de gastar o dinheiro dos outros. Essa assimetria entre as regalias visíveis de alguns e os custos invisíveis da maioria cria a engrenagem que leva os governos a gastar cada vez mais para preservar a sua clientela, ou maioria política.
Neste sistema que teimamos em apelidar de democrático, o homem político já não é o representante do interesse geral, tornou-se gestor de um fundo comercial. A opinião pública é um mercado e os partidos políticos procuram rentabilizar as suas vozes (votos) através da distribuição de favores. De resto, se observarmos bem, os partidos políticos actuais caracterizam-se mais pelas vantagens particulares que prometem do que pelos ideais e interesses que defendem.
Seguindo este discurso chegamos à conclusão de que a democracia tornou-se imoral, é injusta e tende para o totalitarismo.
Os cidadãos das nossas sociedades deixaram de ser independentes; assemelham-se a drogados dos favores do Estado.
Esta perversão da democracia conduz, a curto prazo (como vamos comprovando), ao empobrecimento geral e ao desemprego, dado que os recursos disponíveis para a produção de riquezas diminuem, ou desaparecem.
Estarei sendo claro? Então, prossigamos.
Não é meu propósito apresentar soluções mas tão-somente referir e chamar a atenção para os limites e as armadilhas que a democracia tem a vencer; os leitores, candidatos a democratas, disporão, assim, de alguns dados para melhor apreciar a nossa democracia, e outras, e os seus intérpretes directos no poder, a fim de a poderem entender e influenciar já que democracia implica participação.
Quererão, também, que vos fale da legitimidade do Estado, isto é, como é que ele se torna legítimo?
Aqui, caros leitores, intervém a contribuição da ideologia e dos ideólogos. Desde sempre o Estado teve gente, mais ou menos qualificada, cuja função principal é torná-lo legítimo. Estes ideólogos estão encarregados de explicar ao povo que uma injustiça, ou crime individual é condenável, mas que, cometido em massa, pelo Estado, é justo. Sem ideólogos não haveria Estados. Os políticos sabem disso desde os tempos mais recuados. O conteúdo das ideologias poderá ter variado mas a sua finalidade tem sido sempre a mesma: convencer a opinião pública de que a existência do Estado é necessária e as suas “punições” devem ser absolvidas. Nenhum Estado, quer seja monárquico, democrático ou ditatorial poderá sobreviver longamente se não tiver o apoio da opinião pública; não é necessário que esse apoio seja activo; a resignação é suficiente, isto é, a passividade da chamada maioria silenciosa.
Nos tempos antigos, os ideólogos eram padres. Na época moderna estes foram substituídos pelo discurso, de aparência mais científico, de economistas, cientistas dos mais diversos ramos e outros quadros qualificados. Não é por acaso que todos estes propagandistas ocupam, geralmente, cargos públicos ou virão a ocupar outros cargos muito bem remunerados nas empresas públicas, e que o Estado controla todos ou os mais importantes meios de expressão e de comunicação.
Deixo aos leitores o trabalho de tirar mais conclusões e de apreciar as minhas reflexões. Será possível prevenir os abusos e desvios assinalados? Quer parecer-me que sim, tornando os Estados, as Democracias, mais respeitáveis, honestos e previsíveis.
No artigo anterior falei um pouco disso, enfatizando a necessidade da participação efectiva dos cidadãos mobilizados por uma informação verídica e não por propaganda, pois esta gera o rebanho, o mesmo é dizer, a maioria silenciosa. E, como devem saber, caros leitores, em Democracia vera é inconcebível a existência da maioria silenciosa. A liberdade e a democracia são entendidas como produto de uma longa evolução gradual, uma longa e perpétua conversação. Daí o nosso atraso, dado que ainda estamos no princípio disso por nos terem considerado intelectual e politicamente de menoridade necessitando de ser organizados e enquadrados, isso tanto no longo período do fascismo como no de partido único. Hemos de convir que, nos últimos anos, após o descrédito do partido único e do comunismo e entrados em democracia tout court, os governantes não têm cometido muitas tropelias e os cidadãos vêm respirando e barafustando com certa liberdade, sem se sujeitarem a grandes taponas. O único óbice que ainda persiste, ou se adoptou é o silêncio quando se interrogam alguns representantes do Estado, um tanto surdos e mudos quando a pergunta, ou a crítica não lhes agrada. Mas, como somos um povo prenhe de fé, não perdemos a esperança de os ver mais receptivos, solidários e cooperantes connosco, isto é, com o povo.
Bangui/Parede, 1992/ 2010/2011
(Pediatra e sócio honorário da Adeco

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