terça-feira, 31 de maio de 2011

Foi-se o mais africano dos brasileiros

Abdias do Nascimento, actor, director, dramaturgo, pintor, economista, académico, político e militante pan-africanista, despediu-se do palco da vida na noite de segunda-feira, 23 de maio, aos 97 anos após cerca de um mês de internação por problemas cardíacos, no Hospital Federal dos Servidores, no Rio de Janeiro.

Por: Alberto Castro*

 Foi-se o mais africano dos brasileiros 
 
Neto de africanos escravizados, filho de pai sapateiro e mãe doceira, nasceu na cidade de Franca, São Paulo, em 1914. Um dos pioneiros da luta contra a discriminação racial no Brasil, integrou a Frente Negra Brasileira na década de 1930 e criou em 1944 o Teatro Experimental do Negro (TEN), um espaço cultural que, para além de visar a formação e inclusão dos artistas afrodescendentes no teatro brasileiro, se tornou num verdadeiro centro de formação e consciencialização política dos negros brasileiros.
Em 1949 denunciou assim a criminalização preconceituosa do negro: "Basta um negro ser detido por qualquer coisa insignificante - assim como não ter uma carteira de identidade - para ser logo tratado como se já fosse criminoso. Dir-se-ia que a polícia considera o homem de cor um delinquente nato, e está criando o delito de ser negro”.
Perseguido pela ditadura militar, exilou-se nos Estados Unidos de 1968 a 1978, actuando como conferencista, professor e escritor. Da sua obra literária destacam-se "Sortilégio", "Dramas Para Negros" e "Prólogo Para Brancos", "O Negro Revoltado", livros que retrataram as realidades quilombolas e levantaram temas como o pensamento dos povos africanos, combate ao racismo, democracia racial e o valor dos orixás nas religiões de matriz africana. Do seu legado, para além do TEN e dos livros, inclui-se, entre outros, o jornal o "Quilombo" fundado em 1968 e o Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO), criado em 1981 após o seu regresso do exílio.
Apoiante da Negritude e dos movimentos Pan-Africanistas, no exílio não hesitou em identificar-se com a facção do nacionalismo pan-africanista de Patrice Lumumba, Aimé Césaire, Cheikh Anta Diop, Malcolm X, Steve Biko, entre outros, considerada então de radical, minoritária e desprezada como tendência de negros "racistas" e "incultos". Como activista do Pan-Africanismo, Abdias do Nascimento, entre outros, colocou a descolonização de África na cena política brasileira.
Escreve o professor Carlos Moore, no prefácio do livro "O Brasil na Mira do Pan-africanismo", que "Um dilema para Nascimento, na sua acção internacional, foi a questão dos métodos a utilizar na luta pela liberdade dos povos negros. Luta armada ’por todos os meios necessários’ (Kwame Nkrumah, Malcolm X, Amílcar Cabral, Frantz Fanon)? Ou via pacífica, mediante sucessivas etapas de negociação (Martin Luther King, Léopold Sédar Senghor, Desmond Tutu, Albert Luthuli)? Homem pacífico por natureza, Nascimento sempre teve uma predileção pela negociação. Apaixonado na denúncia da opressão, sempre foi moderado no confronto fraternal das ideias; a luta violenta nunca foi o caminho predileto de seu coração. Mas, diante da crueldade racista das potências colonizadoras, como nas colónias portuguesas, e sob os implacáveis regimes de apartheid na África do Sul, na Namíbia e no Zimbabwe, apoiou a luta armada nesses países."
De volta ao Brasil, engajou-se na política pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), uma legenda da esquerda brasileira fundada por Leonel Brizola, tendo sido deputado federal de 1983 a 1987 e senador da República de 1997 a 1999. Como deputado federal apresenta projectos de lei definindo o racismo como crime. Foi de sua autoria o primeiro projecto de lei de políticas públicas afirmativas da história do Brasil.
Fortemente ligado ao Movimento Negro Unificado, do qual foi um dos fundadores em 1978, Abdias do Nascimento nunca se cansou de denunciar o racismo brasileiro o qual caracterizava de covarde. Por sugestão sua é instituído o 20 de Novembro como Dia da Consciência Negra no Brasil, data que se celebra desde 2006.
Foi indicado por duas vezes, em 2004 e em 2010, ao Prémio Nobel da Paz e recebeu honrarias dos Estados Unidos, Nigéria, México, Unesco e ONU. No Brasil, recebeu das mãos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva a honraria mais alta outorgada pelo governo brasileiro: a Ordem do Rio Branco, no grau de Comendador.
Recentemente ele apareceu no capítulo quinto (segmento dedicado ao Brasil) do documentário da TV americana PBS com o título "Black in Latin America", dirigido e apresentado pelo professor Henry Louis Gates Jr., prestigiado académico de Harvard, documentarista, editor-chefe da revista afro-americana The Roots, colunista do jornal The New York Times e da revista The New Yorker, a última pessoa a entrevistá-lo. Durante a entrevista (http://video.pbs.org/video/1906000944), Abdias classificar a democracia racial brasileira de "piada" e o racismo brasileiro de "escancarado e covarde" por não permitir a ascensão do negro na pirâmide social de um país onde ele deu tanto e representa a maioria (50,7%) da população.
Um dos mais emocionantes testemunhos de elogio ao grande líder negro brasileiro veio de uma mulher branca, a escritora, actriz e fotógrafa freelance ítalo-brasileira Verinha Ottoni que, ainda em 2002 escreveu no seu domínio da Internet, em inglês aqui traduzido, o seguinte:
"Abdias foi uma enorme influência em mim, ele me introduziu no teatro e no amor por ele. Ele ensinou-me a respeitar os outros, independentemente da cor de suas peles ou de suas origens étnicas. Pode parecer surpresa para muitos, mas o Brasil é uma sociedade muito racista. Ainda esta semana estive falando com uma amiga brasileira que me estava dizendo o quão feliz estava pela sua filha branca de olhos azuis não ter ido viver para Londres ou para os EUA porque receava que ela terminaria casando com um homem negro! Minha resposta para ela foi a de que não me importaria nada de ver minha filha se casando com um homem negro. Estou antes preocupada com que minha filha se case com um homem que a ame e trate bem. Estas são as batalhas exactas sobre ignorância e o preconceito que eu me lembro de ver Abdias do Nascimento combatendo contra no Brasil. E por isso, eu considero Abdias do Nascimento o único brasileiro de quem estou orgulhosa.
Abdias partiu ao encontro de seus antepassados precisamente na semana em que se celebra o Dia da África’, criado simbolicamente pela ONU em 1972 para colocar um ponto final à colonização do continente. Pediu para que suas cinzas fossem lançadas aos ventos da liberdade da Serra da Barriga, onde ficava o território livre de Zumbi dos Palmares. Levou vestido o inseparável bubu africano que sempre fez questão de usar orgulhosamente para marcar sua identidade negra e respeitar a sua ancestralidade africana. Partiu odiando de uma forma profunda e amarga o racismo brasileiro pelo que ele fez e faz aos afrodescendentes, conforme fez questão de realçar na entrevista a Henry Gates Jr. Deixa como legado maior uma vida inteira de luta intensa e sem tréguas ao racismo, uma luta inspiradora para milhões de brasileiros de todas as cores que sonham e lutam por uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária.
Jornalista freelancer residente em Londres, formado em História e Política pela SOAS, Universidade de Londres*.

1 comentário:

  1. Grande Homem, o ultimo dos grandes Pan-Africanistas e um dos maiores brasileiros de sempre. O Pele da luta contra racismo, embora colocar Pele, um negro de alma branca, aqui como comparacao seja quase um insulto a memoria de Abdias.

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