quarta-feira, 28 de março de 2012

Saravá Criola!* 28 Março 2012

“Ce qu’il y a de plus beau chez un homme, c’est sa femme”
Por: David Leite

Saravá Criola!*

1. Igualdade desigual
Março, para nós, é mês da Mulher. Muita coisa mudou, mas a igualdade entre os sexos levou tempo: só na década de noventa do século passado, que arrancou sob o signo da abertura política e económica, saiu verdadeiramente do ideário político para a luz do dia. Desde então temos mulheres no Governo e empresárias de sucesso! Saravá criola !
Mas nem todas as mulheres tomaram o seu destino em mãos! E não devemos perder de vista as graves dissimetrias que prevalecem nos meios rurais e suburbanos onde os preconceitos, às vezes, pesam mais do que o bom senso. A violência exercida no lar justifica que nos interroguemos sobre a sorte dessas mulheres indefesas e crianças inocentes de quem tanto se fala mas que poucos escutam; dos traumas que carregam enquanto a culpa morre solteira!
Do mesmo modo, merecem debate os impactos sócio-familiares do machismo endémico que se enraizou entre nós desde os mais recuados tempos. Mas debate sério! Que não embarque “de boleia” em feminismos folclóricos e “revanchistas” que nos desviam do essencial, nem na tentação de “virar do avesso” o machismo que ao longo da história subverteu o equilíbrio e a sanidade da relação homem/mulher. Quem imita não condena! Saúdo a mulher conselheira, “juiz de paz” nas querelas de família, conciliando pais e filhos e irmãos desavindos, semeando harmonia num mundo de brutos! Rendo homenagem às mães desveladas que ficaram sem amparo porque seu “príncipe encantado” partiu “pai incógnito” sem honrar os seus deveres parentais! Saravá criola, carregadeira de cais, “criada d’quintal d’gent”, que criaste teus filhos vendendo peixe ou semeando em terra de morgado! Saravá criola que esperaste, perseverante, teu crêtcheu na terra-longe, na angústia de o perder no mar ou nalgum aconchegante “fundo de ladeira”!
Saravá criola! i
2. Uma história de homens?
Dou comigo a pensar: a história da mulher é uma história de homens! Em Cabo Verde e não só. Por respeito às nossas primeiras mães, e porque o passado é a chave do presente, não temos o direito de fazer tabula rasa da falocracia que durante séculos as sujeitou aos desígnios do “sexo forte”.
Meu pensamento vai longe: vai para a jovem escrava de alcova do seu amo e senhor, vivendo na angústia de ser raptada ou violada pelos escravos “vadios”! E recua de cinco séculos e meio até aos primeiros portugueses, genoveses e outros pioneiros que vieram em cata de fortuna ou aventura, e cedo foram possuídos pelo desânimo: como prosperar (ou ao menos sobreviver) nestas ilhas de natureza avara e de chuva rara? Se era para trabalhar a terra com as suas próprias mãos, pensavam, teriam ficado lá onde estavam! Com os olhos postos em África e as expectativas em Lisboa, lá escreveram a el-rei D. Afonso V que atendeu às suas súplicas, outorgando-lhes, em 1466, a “Carta Real de Privilégios”, valendo licença de livre comércio nos “Rios da Guiné”. E armaram navios e navegaram para o continente, e de lá regressaram com escravos.ii
Assim começou a história humana destas ilhas: sob o signo da mestiçagem. Exceptuando as raras famílias “de condição”, não deviam ser muitos os mancebos do Reino que traziam ou mandavam buscar a sua amada para a África no século XV! Muito menos aqueles que viraram donos e senhores de graciosas escravas... Até padres e missionários sucumbiram, corpo e alma, ao “pecado da carne”! Em 1591, o corregedor Gomes Raposo recebia de Lisboa este aviso à intenção dos homens que haviam abandonado esposa e filhos no Reino: ou mandavam sustento ou iam recambiados à força para Lisboa!iii
Quem não queria saber dos mulatos eram os puristas da raça na corte de Filipe II. Uma carta real de 1620 recomendava a deportação para Cabo Verde (como já se fazia para o Brasil) de raparigas de vida airada condenadas pela justiça... a fim de “acabar com a proliferação dos mulatos”!iv Tarde demais, o “mal” já estava feito!
Entretanto, o machismo endémico e visceral trazido da Europa só podia exacerbar-se nas ilhas com a escravatura, dando lugar a uma poligamia de facto, não obstante a influência da igreja católica. Salvo excepções (já lá vamos), os concubinatos ou matrimónios mistos mais não fizeram senão transformar a mulher (livre ou escrava) em “ esposa” obediente, submissa a um marido infiel e autoritário, às vezes ocioso. De passagem por Ribeira-Grande, em 1690, o francês Robert Challe conta, no seu diário de bordo, o que viu: “Os portugueses (...) casam com mulheres (da terra) que maltratam enquanto elas lhes ganham o pão” . v
Nem mesmo em França brilhou o “século das luzes” para as mulheres! A revolução francesa (simbolizada por um ícone feminino) não lhes deu voz. À Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), contrapôs Olympe de Gouges, precursora do feminismo francês, a “Declaração dos Direitos da MULHER e da Cidadã”! E mais disse: - “Se a mulher tem o direito de subir ao cadafalso, também deve ter o direito de subir à tribuna”! Demasiado “subversiva” para a sua época, não deixaram Olympe de Gouges subir à tribuna, mas levaram-na ao cadafalso : foi guilhotinada em 1793!
3. O reverso da medalha
Mas a nossa história é também a dessas mulheres de têmpera que conseguiram driblar o seu destino, não obstante as escassas liberdades que a sociedade lhes consentia: a esposa de um rico armador ou latifundiário, morrendo-lhe o marido; a filha única (ou sem irmãos varões), herdeira de títulos e bens. Ser “filha de” ou “viúva de” era um “sésamo” que podia abrir portas, até mesmo no Reino! Sem desprimor para o protagonismo masculino (marido ou pai) como motor de sucesso, pode-se afirmar que a esposa ou “companheira” não só mudou o seu próprio destino como contribuiu para mudar o rumo da sociedade colonial. A sua descendência mulata (os “filhos da terra”) foi o embrião da classe média de Santiago (os chamados “brancos da terra”, título bem equívoco na conjuntura presente).
Importa salientar que da “terra firme” da Guiné não vinham apenas escravos mas também homens livres. Uns, convertidos, faziam-se padres, outros iam para ofícios diversos (Os “línguas” (intérpretes) ganhavam bem a vida nos lucrativos negócios da Guiné).vi Sabe-se que uma jovem de nome Brízida, enviada por seu pai Beca Caia, um régulo da terra dos Sape, para estudar, acabou por se deixar ficar em Santiago.
Devia ser raro, um caso destes! Seja lá como for, muitas mulheres do nosso tempo não têm tanta liberdade! Nem a autoridade de certas matriarcas de Santiago, nem a audácia daquelas que armaram navios nos “Rios da Guiné” no tempo dos “lançados” (séculos XVI a XVIII). [Comerciantes aventureiros e destemidos eram os “lançados (quase todos judeus ou cristãos-novos) que em terras ignotas da Guiné desafiavam as leis do Reino e o monopólio das Companhias comerciais, incorrendo em severas sanções de Lisboa por negociarem com os estrangeiros sem licença real. Até a pena de morte foi decretada contra eles!] Mulher de pulso foi Nha Bibiana Vaz, riquíssima proprietária e negociante de Cacheu, que em 1684-85 dirigiu uma revolta de comerciantes contra a Companhia do Estanco do Maranhão e Pará (luso-brasileira) pelo direito de negociar livremente com os ingleses. (Bibiana Vaz foi trazida para Santiago e fechada na prisão juntamente com outros co-acusados.) vii
Vou lembrando, de passagem, que a influência do catolicismo não deixou que o islão (presente na Senegâmbia desde o século XI e africanizado com as tradições animistas) atravessasse o Atlântico. Assim não foram as nossas mulheres sujeitas a ritos iniciáticos afro-islâmicos como a excisão (ablação de parte dos órgãos genitais), uma tradição ancestral hoje em dia banida por lei em África. Pasmados ficaram uns visitantes franceses ao verem mulheres fumando nas ruas da Ribeira-Grande (Cidade-Velha) em 1699. Tamanha audácia não se via nos salões “branchés” de Paris!
Parece que foi na Boa Vista que se abriram, em 1844, as primeiras escolas privadas para meninas. Nem todos os países como o nosso podem dizer a mesma coisa!viii Também se acredita que Boa Vista é o berço da “morna” e que foi pela voz feminina que ela começou a imperar na nossa música.ix Se na Argentina o tango era dançado entre homens pelos seus passos viris, em Cabo Verde a morna era reservada, dizem os antigos, às mulheres, cantando o amor e a saudade porque ninguém sabe amar nem esperar como elas.
Saravá criola!
4. “Meu apelido não dou!”
De geração em geração foram sendo transmitidos os códigos e costumes no seio da família, com as irmãs ao serviço dos irmãos. Futuras esposas e mães aquelas, deviam zelar pelo bem-estar destes. Nas famílias “ remediadas”, o único esforço dos rapazes era “meter os pés debaixo da mesa” e ir à escola para um dia administrar a sociedade !
Não vai longe o tempo em que o “sexo forte” se agregava todos os direitos, contentando-se as mulheres com os deveres... até mesmo, para algumas, o de criar os “filhos de fora” que os maridos infiéis lhes traziam para casa (quando não eram concebidos ali mesmo, numa dependência dos fundos!) Quantas criadas e serventes expostas aos “assaltos” impetuosos de respeitáveis “senhores” que desprezaram o fruto da sua semente! À vergonha do “pai incógnito” acrescia a injúria da esposa traída e os rancores dos “filhos ilegítimos”.
O direito colonial favorecia este estado de coisas ao condicionar o reconhecimento dos filhos “ilegítimos” ao acordo formal da esposa que, tendo perdido a face, numa coisa podia “vingar-se” : - “Meu apelido não dou, ora essa!” E recusando ela, não podia o marido perfilhar. Excluídos assim do nome e da herança paternos, não tinham os “filhos de fora” os mesmos direitos, nem os mesmos valores, que os “ filhos de casado” ; alguns eram relegados ao quintal e às lides domésticas como se criados fossem!
Resignação ou fatalidade, apetece-me lembrar que, contrariamente ao baptismo e outros sacramentos, casamento, nos tempos idos, era, excepções à parte, coisa de gente “remediada”. Nem todas as famílias pobres resultavam de uma qualquer convenção nupcial, e naturalmente criaram-se outras convenções, bem patentes nas designações “pai de filho” e “mãe de filho”. Não era apenas por razões administrativas que um homem decidia, já no crepúsculo da vida, “dar sacramento” à mãe dos seus filhos - no fundo, era também um reconhecimento pela sua lealdade e companheirismo (não necessariamente porque ela tivesse sido a única, mas a “escolhida”!)
“Mulher casada” era assim um título que se merecia, mas que nem sempre valia mais do que isso: iletrada ou apenas escolarizada, por isso dependente, fechar os olhos à libido adulterina do marido infiel era muitas vezes o preço a pagar pelo apelido que lhe devia ! Mulher ou “mãe de filho” era “formatada” (como um logiciel, dir-se-ia hoje em dia) para procriar, ocupar-se do lar e do seu bem-amado marido ou “pai de filho” (Eu ainda ouvi a velha Nh’Ana tratar seu marido por “ocê”... e “Nhô Jom”!)
5. Do ideário político à realidade
Durante a luta armada na Guiné (1963-1974), as mulheres ajudavam no ensino e na saúde. Em tempo de vacas magras, deram calor e reconforto ao homem que amavam. Mas mudam-se os tempos, mudam-se os amores... Terminado o conflito, muitos “camaradas” viraram as costas à humilde “badjuda” da tabanka, preferindo as “mininas di liceu” de Bissau, Bafatá, Praia ou Mindelo, “ki sabi entra ki sabi sai”!x
Mesmo depois da independência, a tão proclamada igualdade homem-mulher ficou cingida à retórica político-ideológica do Partido, veiculada, em primeira-mão, pela Organização das Mulheres de Cabo Verde. Mas nem por isso se satisfez a OMCV com o “bónus” do dia internacional das mulheres e seus discursos empolgados a dissiparem-se numa realidade injusta. Em boa hora, viu a luz um novo Código da Família, contemplando a união de facto e o divórcio de comum acordo, com a nova lei da filiação a pôr cobro às discriminações entre filhos “legítimos” e “ilegítimos”. “Pai incógnito” acabou-se! Não estavam em causa apenas os direitos das nossas mulheres, mas também a sua dignidade.
Hoje, mais do que nunca, nossas médicas, magistradas, engenheiras, são “novas seivas” num Cabo Verde aberto e competitivo onde o empresariado feminino é um exemplo a seguir.
Saravá criola !
Mantenhas da Terra-Longe, 21 de março de 2012
(modestoleite@facebook.com)

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