quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Bélgica: um país no divã !


Numa altura em que pelo menos dois países árabes festejam a queda dos seus governos, um país europeu reclama a criação de um. A Bélgica chegou hoje oficialmente ao dia 256 sem Executivo. Está assim desde 13 de Junho do ano passado.
A falta de um governo central poderá acabar por fazer desaparecer a pouca cola que ainda vai unindo as duas grandes metades linguísticas do país 
 
A falta de um governo central poderá acabar por fazer desaparecer a pouca cola que ainda vai unindo as duas grandes metades linguísticas do país.



No dia-a-dia isto não se nota. Os transportes funcionam, o lixo é recolhido, as pessoas andam ordeiramente pelas ruas e o país acolheu sem sobressaltos, no segundo semestre de 2010, a presidência rotativa da UE. Talvez por isso, os belgas estejam a encarar a situação com uma boa dose de humor. Mas alguns especialistas alertam para a real possibilidade de o impasse se arrastar indefinidamente e para o perigo de o país ser apanhado numa crise financeira e social antes mesmo de ter primeiro-ministro.

Primeiro foi a questão bigode/barba. Talvez inspirado no clássico Poirot, o detective belga criado por Agatha Christie, o actor e humorista Benoït Poelvoorde lançou em Janeiro um apelo aos seus conterrâneos: que deixassem crescer as pilosidades faciais até que houvesse um governo.

Depois foi o apelo da senadora. A socialista flamenga Marlene Temmerman propôs, no início deste mês, uma iniciativa inédita para resolver o impasse político: a abstinência sexual até que os políticos se entendam.

O objectivo desta proposta inusitada era que as mulheres dos líderes políticos do país - dividido entre duas grandes comunidades linguísticas, francófonos e flamengos - pressionassem os maridos em direcção a um entendimento.

Entretanto foi também inventado um jogo de mesa, o Belgotron, que testa o conhecimento dos participantes acerca da Bélgica. O prémio principal é a atribuição do cargo de primeiro-ministro ao vencedor. Nem mais.

No dia 23 de Janeiro, cerca de 40 mil pessoas saíram à rua para mostrar aos governantes que ainda não tinham perdido a esperança. Foi a "marcha da vergonha”, 200 dias depois das eleições que ainda não tinham dado governo. Mas, mais uma vez aqui, não faltaram os slogans humorísticos. Alguns cartazes, segundo a Slate.fr, limitavam-se a pedir cerveja mais barata e outros diziam “Manifestação aprovada pelo Chuck Norris”. Mais um exemplo da capacidade olímpica que os belgas têm de se rirem de si próprios. Quando mais não seja, a Bélgica é o único país que se pode gabar de ter como ex-libris uma estátua de 20 cm que faz chichi diante das visitas.

Esta verve humorística culminou, na passada quinta-feira, com a chamada “revolução das batatas fritas”, num gozo claro à “revolução de jasmim” que derrubou Ben Ali na Tunísia e desatou uma série de revoluções no mundo árabe.

A revolução das batatas fritas

Esta revolução pacífica aconteceu precisamente no dia em que o país chegou ao 249º dia sem governo, batendo o (pseudo) recorde mundial da nação que esteve sem Governo durante mais tempo. Em rigor isto não é verdade. O Iraque esteve efectivamente sem Executivo em funções durante 289 dias, embora tenha anunciado ao final de 249 dias a conclusão de um acordo oficial com vista à formação de governo. Se as coisas se mantiverem como estão, a Bélgica poderá sim, no final de Março, comemorar com todo o rigor o título recordista.

Não querendo esperar até final de Março, diversos jovens manifestaram-se já na semana passada em várias cidades belgas, nomeadamente em Ghent, onde procederam a um striptease colectivo, ficando apenas em roupa interior. Outros distribuíam batatas fritas às pessoas que passavam. Dizem as más-línguas que este popular símbolo da gastronomia belga é, provavelmente, o único elemento agregador de um país dividido em dois. Mas lá chegaremos.

Estas mobilizações e palhaçadas embrulhadas em activismo político e potenciadas pela velocidade das redes sociais são, na realidade, fruto de um sentido de humor muito próprio dos belgas.

Annelien De Greef, uma jornalista do diário flamengo “De Standaard” admite ao PÚBLICO que “é uma coisa muito belga” as pessoas rirem-se dos problemas e deles próprios. “Mas, apesar de nos rirmos de um problema, isso não quer dizer que ele não nos incomode”.

Regis Dandoy, investigador de Ciência Política na Universidade Livre de Bruxelas prefere sublinhar, por seu lado, que os belgas, apesar de terem “um sentido de humor muito particular”, estão provavelmente a manifestar-se desta forma porque, por um lado, “se sentem impotentes” e, por outro, “não entendem realmente o que se está a passar”.
Como é que a Bélgica chegou a esta situação? Em Abril do ano passado, o governo do cristão-democrata flamengo Yves Leterme caiu. Era já o terceiro colapso em dois anos. Em Junho do ano passado voltou a haver eleições e o país ficou paralisado desde essa altura. O que aconteceu? O vencedor dessas eleições foi a Nova Aliança Flamenga (N-VA), que reclama mais poderes federais para a região da Flandres e, em última análise, preconiza o desaparecimento da Bélgica tal como a conhecemos hoje.

Desde essa altura, o rei Alberto II nomeou uma série de mediadores responsáveis por um entendimento entre os nacionalistas flamengos da N-VA e os socialistas valões. Até ao momento, todas as negociações falharam. Na quarta-feira, data da última tentativa, Didier Reynders - encarregue interinamente da pasta das Finanças - anunciou não ter havido progressos. Sabe-se que vai continuar a tentar obter um acordo durante os próximos 15 dias. O Euronews adianta que as suas hipóteses de sucesso são “finas como uma lâmina”.

As mais recentes ideias para o fim da crise incluem a proposta de transformar o país numa “União Belga” - uma confederação de quatro para-Estados: Bruxelas, Flandres, Valónia e a região onde se fala alemão - ou então a de dar ao país o chamado “tratamento dos Balcãs”. Ou seja, que o problema seja entregue a uma enviado especial que se responsabilize pela formação de um governo, dada a demonstrada incapacidade dos governantes nacionais para o fazer.

Os “egoístas” e os “preguiçosos”

A Bélgica e um país sui-generis. Imagine-se uma nação com um terço da área de Portugal mas com três comunidades distintas de falantes (holandês, francês e alemão). Duas destas comunidades linguísticas são maioritárias - a que fala holandês, maioritária na região da Flandres, e a que fala francês, maioritária na região da Valónia - e ditaram uma separação clara do país em duas metades. Na metade norte temos a Flandres, mais populosa (com cerca de seis milhões de pessoas) e na metade sul a Valónia, com cerca de quatro milhões e meio de pessoas. Para complicar ainda mais, Bruxelas é um enclave de maioria francófona na região da Flandres.

Acontece, porém, que a metade norte é hoje muito mais poderosa economicamente. “A metade flamenga quer mais autonomia por razões linguísticas e por razões económicas. São uma região rica e gostariam de manter a sua riqueza e não ter de estar a pagar pela outra região, menos rica. Fazendo o mesmo paralelo, era como se o Norte de Portugal dissesse que iria deixar de financiar o sul do país, mais empobrecido”, explica Regis Dandoy.

Pierre Verjans, professor da Faculdade de Direito e Ciências Políticas da Universidade de Liège, explica ao PÚBLICO as actuais dinâmicas identitárias internas: “As diferenças económicas - que antigamente eram favoráveis à Valónia mas que se inverteram na década de 1980 - fazem com que os valões vejam os flamengos como egoístas que não querem partilhar a sua riqueza e, ao contrário, que os flamengos vejam os valões como preguiçosos, que beneficiam do sistema de segurança social federal”. Paralelamente, há toda uma barreira linguística entre francófonos e valões. Tudo isto faz com o próprio Estado seja bipolar, dual e quase esquizofrénico. “A concepção do papel do Estado varia entre uma concepção neoliberal no norte, diminuindo o poder orçamental da intervenção do Estado nas prestações sociais (subsídios de desemprego, subsídios de integração e reembolso com despesas de saúde), ao passo que no sul essas prestações são consideradas como indispensáveis para ajudar a manter à deriva uma população que ficou fragilizada após a desindustrialização”, explica Pierre Verjans.
Perante este cenário, e tendo as finanças a seu favor, a ideia de uma Flandres independente começou a ganhar força. “Na Flandres sempre tivemos partidos nacionalistas e autonómicos, mas em Junho passado eles tiveram o seu maior sucesso eleitoral desde a sua criação. Pela primeira vez a Nova Aliança Flamenga (N-VA) tornou-se o partido mais forte na Flandres e em toda a Bélgica. Isto tornou a situação complexa porque este partido reivindica mais autonomia para uma região e, em última instância, a independência desta região”.


Mas poderá o país partir-se efectivamente em dois? Annelien De Greef explica o sentimento que grassa na Flandres, onde vive e trabalha: “Há dois anos, a ideia de uma Bélgica que se poderia partir em dois era uma coisa em que só um punhado de pessoas acreditava. Mas, no último ano, mais e mais pessoas têm dito que gostam da ideia. Vejo cada vez mais gente radical à minha volta. A frustração está a aumentar. Na semana passada fui à cabeleireira e ao médico e, em ambos os sítios, as pessoas dizem que Bart De Wever (o líder da N-VA) não deveria desistir [das negociações duras que mantém com os socialistas valões para a formação de governo]”.

“Eu entendo que é necessário dar mais poder às regiões; é impossível deixar as coisas como estão. O país tornar-se-ia mais eficiente. Mas separar o país em dois é completamente diferente. É uma ideia estranha para uma nação com uma mentalidade tão europeia. A Bélgica sempre reclamou uma maior integração europeia, e agora ameaça desintegrar-se ela própria?”, comenta Annelien.

Comentando esta hipótese, Regis Dandoy esclarece: “Sim, a separação é um cenário possível, mas não a curto prazo. Há muitos aspectos que têm de ser considerados antes de a Bélgica se separar. Se a separação ocorresse, seria uma tarefa monstruosa fazer a separação de tudo: os transportes públicos, a dívida pública, o Exército... Tudo! E isto não poderia acontecer em seis meses ou em poucos anos”.

“Na minha opinião, se a Bélgica se vier a separar, isso poderá demorar 30 ou 50 anos até acontecer. Nunca antes disso”, conclui o investigador.

Porém, apesar das diferenças, as pessoas ainda preferem olhar para as semelhanças. Paralelamente aos desentendimentos e ao braço-de-ferro, as pessoas continuam a querer acreditar numa Bélgica unida. Depois das eleições de Junho, as bandeiras belgas começaram a aparecer penduradas nas janelas e nas varandas, a par com a mensagem “Não toquem no meu país”.

E este é o paradoxo da Bélgica, um país que se diria a precisar de psicanálise. Apesar de as sondagens revelarem que, se as eleições fossem hoje, os resultados seriam os mesmos de Junho passado, os belgas não querem realmente uma separação de facto. Quem o diz? Novamente as sondagens. “As pessoas ainda acreditam na Bélgica, mesmo no lado flamengo. As pessoas continuam a acreditar que há futuro para o país. Se olharmos para as sondagens, a percentagem da população que concordaria com a separação do país em dois é pequena. Situa-se entre os 10 e 15 por cento na Flandres. E isto representa sete ou oito por cento de toda a população. Quase nada. É uma minoria. Isto revela que a população não está preparada e que as pessoas ainda acreditam na Bélgica”, indica ao PÚBLICO Regis Dandoy.
Situação poderá arrastar-se até 2014

Apesar de toda esta indefinição, o país continua a funcionar com normalidade, precisamente porque são os governos regionais e das comunidades (e não tanto o governo central) que, no fundo, tomam as decisões do quotidiano. Para além de um governo central e de três governos regionais (Valónia, Bruxelas e Flandres), há ainda mais três estruturas adicionais chamadas Comunidades para lidar com as complexidades belgas que advêm das diferentes línguas faladas no país.

Consegue-se perceber que é graças a esta malha intrincada de poderes, por mais complexa e burocrática que possa parecer, que a Bélgica se aguenta há oito meses sem um governo central. Mas é preciso frisar que o país vive em duodécimos desde o início do ano. Apesar de já estarmos em Fevereiro, ainda não há orçamento aprovado para 2011. “Há um país europeu que está a funcionar há dois meses sem um orçamento federal. O orçamento que estamos a usar é o mesmo de 2010. A Bélgica está a funcionar ‘normalmente’ com o mesmo orçamento do ano passado porque a situação está bem organizada a nível regional”, confirma o investigador Regis Dandoy.

Mas este cenário - que mais parece uma paz podre - pode vir a alterar-se caso o país enfrente uma crise grave. “Uma coisa que está a faltar (mas que poderá mudar muito rapidamente) é o sentimento de urgência. Nós não sentimos a crise. E não a sentimos nas nossas carteiras. Pelo menos ainda não. Mas é muito perigoso esperarmos até que isso aconteça. Assim que as agências mudarem o nosso rating, por exemplo, a disposição poderá mudar muito rapidamente”, explica Annelien De Greef.

Actualmente já circulam online campanhas de cidadãos que ameaçam vir para as ruas pedir o seu dinheiro de volta em caso de não haver governo até ao final de Abril (altura em que o Executivo caiu). Os belgas - sobrecarregados com impostos - não parecem interessados em continuar a pagar a políticos que, aparentemente, não conseguem fazer o seu trabalho.

Até quando poderá durar esta crise? Regis Dandoy é lapidar: “Se não houver nenhuma crise importante na Bélgica que torne necessária a existência de um governo central forte, esta situação poderá arrastar-se durante anos. Pode durar até às próximas eleições federais, em 2014”.

Em termos genéricos, o que está a empatar as negociações é uma lição apreendida a custo pela Nova Aliança Flamenga em 2007. Nessa altura o país esteve nove meses sem governo. “Como eles perceberam que não conseguiriam chegar a um acordo mas que era preciso formar um governo, a parte francófona prometeu à parte flamenga que iriam discutir uma reforma de Estado e a autonomia da Flandres já depois de formado o Executivo. Mas o que aconteceu foi que eles não cumpriram essa promessa. E portanto, como os partidos flamengos já aprenderam a sua lição, eles agora estão a dizer que querem um acordo antes da formação do governo e não depois”, explica Regis Dandoy.

Annelien De Greef também se questiona: “Quanto é que a crise irá terminar? Ninguém consegue prever. As pessoas não estão muito optimistas. Há um verdadeiro braço-de-ferro neste momento. Mas começa a ficar claro que uma solução chegará sempre mais tarde do que aquilo que seria bom para nós”.A verdade é que as questões de política externa, de orçamento e dívida começam a não poder ser empurradas para debaixo do tapete durante muito mais tempo. A falta de um governo central poderá acabar por fazer desaparecer a pouca cola que ainda vai unindo as duas grandes metades linguísticas do país. Já para não falar do embaraço que esta situação causa num país que alberga a instituições da União Europeia.

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