sábado, 26 de fevereiro de 2011

Perfil: Khadafi voltou a ser um “Mad Dog”

O coronel que governa a Líbia há mais de quatro décadas deixara de ser um revolucionário anti-imperialista para se tornar aliado do Ocidente contra o terrorismo. Com a repressão sangrenta de uma revolta popular, regressou aos tempos tenebrosos que levaram Reagan a chamar-lhe “o cão raivoso do Médio Oriente”
Foi a 1 de Setembro de 1969 que Khadafi derrubou a realeza 
Foi a 1 de Setembro de 1969 que Khadafi derrubou a realeza 

Em 2009, seis dias de extravagantes festividades, que incluíam um "show de mil camelos e 40 balões de ar quente", assinalaram quatro décadas de poder de Muammar Khadafi e a transformação da Líbia de pária em parceiro de europeus e americanos.

Na altura, a analista Molly Tarhuni, do Royal Institute of International Affairs (Chatham House), em Londres, descrevia as cerimónias como “um ponto de viragem", ou “a prova de que Khadafi é um sobrevivente e que muitos o subestimaram”. Ele pode ser um excêntrico, salientava Tarhuni, numa entrevista ao PÚBLICO, por telefone, mas o Ocidente precisa dele. “Porque a Líbia possui reservas confirmadas de petróleo que ascendem a 41,5 mil milhões de barris e de gás natural num total de 1490 biliões de metros cúbicos de gás natural entre as dez maiores do mundo. A sua importância económica, política e de segurança não se alterou em 40 anos.”

Não admira o sentimento de embaraço de um Ocidente com lucrativos contratos com a Líbia perante a sanguinária repressão de milhares de manifestantes que, na sequência das revoluções contra Ben Ali, na Tunísia, e de Hosni Mubarak, no Egipto, se viraram contra o seu tirano. Ao contrário dos tunisinos e dos egípcios, porém, os líbios estão a pagar um preço muito mais elevado pela sua insurreição: o número de mortos ultrapassou os 2000, segundo diversas estimativas. Khadafi prometeu que lutaria até à última bala, e assim está a fazer, com a ajuda dos seus batalhões tribais (o exército, repartido por clãs subornados, nunca foi uma instituição nacional) e dos mercenários africanos que contratou.

“ Khadafi está divorciado da realidade”, disse ao PÚBLICO, numa entrevista por telefone, Diederick Vandewalle, um dos maiores especialistas na Líbia, professor associado da Faculdade de Dartmouth, (New Hampshire, EUA). “Quando se é ditador durante 42 anos, já ninguém nos diz o que é a realidade, com medo de nos contradizer. Os seus últimos discursos mostraram bem o quanto ele está distante da realidade”, acrescentou o autor de Libya Since Independence: Oil and State-building e Qadhafi’s Libya (1969-1994).

Para manter o poder, beduíno do “Livro Verde” (um guia mesclado de socialismo e islamismo) está a massacrar a sua própria população; já perdeu controlo da parte oriental do país (onde estão os poços de petróleo) e de sectores importantes de Trípoli, a capital; deixou também de contar com o apoio de tribos poderosas, como a Warfalla, que o ajudou a derrubar a monarquia em 1969.

O “Guia da Revolução

Foi a 1 de Setembro de 1969 que Khadafi, membro da tribo Kadhadhafa, um capitão do Exército de 27 anos, tratado pelos amigos como “al-jamil” (o bonitão), derrubou a realeza e instituiu uma Jamahiriya (“estado das massas”) Árabe Líbia Popular Socialista. O rei Idris al-Sanussi estava em tratamento na Turquia e não regressou. O príncipe herdeiro, o sobrinho Hassan, foi obrigado a abdicar.

No dia 8, o chefe do novo governo era Sulayman al-Maghribi, um dos oficiais golpistas, mas, no dia 13, Khadafi, formado numa academia militar depois de interrompido um curso de Geografia na Universidade de Bengasi, já era o "Líder Irmão" e "Guia da Revolução", os únicos títulos que reteve, a par da patente de coronel (recusou ser promovido a general).

A "revolução socialista", sem sangue, foi apresentada por Khadafi, filho de pastores nómadas do deserto de Sirta, como reacção contra a corrupção da dinastia Sanussi e a sua "subserviência aos imperialistas" desde a independência, em 1951. Uma das primeiras decisões que tomou foi ordenar o encerramento das bases do Reino Unido e dos EUA, e a retirada das tropas. Seguiram-se expropriações e nacionalizações de outros interesses estrangeiros.

Como uma nova doutrina a que chamou "Terceira Teoria Internacional", nem capitalismo nem comunismo, Khadafi tentou mobilizar os árabes para o sonho de uma união, sob a liderança do seu ídolo, o egípcio Gamal Abdel Nasser. Os árabes, desconfiados das suas ambições, olhavam-no como "um louco" e recusaram segui-lo. Desiludido, ele trocou o pan-arabismo pelo pan-islamismo, competindo com os sauditas pela influência muçulmana em África. Tinha muito dinheiro para gastar, e não só em mesquitas. Foi banqueiro da Organização de Libertação da Palestina, e da Frente Polisário; do Exército Republicano irlandês (IRA) e de grupos rebeldes no Chade (onde travou uma longa guerra depois de anexar, em 1979, a Faixa de Aouzou, rica em urânio) na Libéria e na Serra Leoa; dos mercenários Carlos, “O Chacal”, e Abu Nidal.Berlim, Lockerbie, Al-Qaeda

Os anos 1980 ficaram marcados por uma extrema violência. Entre 1980 e 1982, enviou esquadrões da morte de “comités revolucionários” para assassinar os dissidentes no estrangeiro que renegava como “cães vadios”. Em 1986, ordenou um atentado na discoteca La Belle, em Berlim (três mortos e 200 feridos, alguns soldados americanos) e, em 1988, fez explodir um avião da Pan Am, sobre a cidade escocesa de Lockerbie (270 mortos). O então Presidente dos EUA, Ronald Reagan, amaldiçoou o "Mad Dog of the Middle East" (cão raivoso do Médio Oriente) e ripostou, mandando bombardear Trípoli e Bengasi. Morreram 60 militares e civis, incluindo uma filha adoptiva de Khadafi.

No final da década de ‘90, submetido a quase uma década de sanções internacionais e enfrentando uma oposição islamista, Khadafi mudou de rumo. Em 1998, foi o primeiro a pedir um mandado de captura para Osama bin Laden. Bill Clinton ignorou a sua proposta de cooperação, mas George W. Bush não lhe virou as costas. A 12 de Setembro de 2001, um dia depois dos ataques da Al-Qaeda, o então chefe dos serviços secretos líbios, Musa Kusa, contactou a CIA e disse-lhes: "Esta é a nossa lista de suspeitos." Em troca, teve autorização para os seus agentes interrogarem presos líbios em Guantánamo.

É claro que antes, em 1998, Khadafi já havia concordado em entregar os dois suspeitos de Lockerbie para serem julgados, e aceitara "responsabilidade" (mas não culpa) pelo ataque. Pagou 2,7 mil milhões de dólares em indemnizações às famílias das vítimas. No ano seguinte, após a suspensão das sanções, os investimentos estrangeiros na Líbia atingiram os 8000 milhões de dólares.

A 20 de Agosto, Khadafi conseguiu a libertação do único condenado, Abdel Basset al-Megrahi, membro de uma tribo, a Megraha, profundamente leal ao regime. Os britânicos invocaram "razões humanitárias" para Megrahi não cumprir 27 anos de uma pena perpétua sofre de cancro e tem "menos de três meses de vida", mas especula-se que foi trocado por lucrativos acordos comerciais com o mais próspero país do Norte de África.

A reabilitação

Em 2003, o imprevisível Khadafi tomou a mais inesperada das decisões: anunciou o fim do programa de armas químicas e nucleares. Seguiram-se cimeiras com Tony Blair (e um contrato com a British Petroleum/BP no valor de 90 milhões de dólares); com Nicolas Sarkozy (que assegurou acordos de 10 mil milhões, a maioria no sector da defesa); e com Silvio Berlusconi (que garantiu negócios de 5000 milhões e o controlo da imigração clandestina – entretanto perdido –, após ter pedido perdão pelo período colonial italiano).

A Líbia atrai os europeus porque o custo de transportar o seu petróleo, pelo Mediterrâneo, é inferior ao dos países produtores do Golfo Pérsico. Os líbios, por seu turno, a dar os primeiros passos para uma economia de mercado (reduziram subsídios, privatizaram mais de cem empresas desde 2003 e pediram adesão à Organização Mundial do Comércio/OMC), estão sedentos de capitais para modernizar as suas obsoletas infra-estruturas e fazer face a um elevado desemprego.

Khadafi – o hipocondríaco que ultimamente vinha trocando as suas guarda-costas etíopes por uma enfermeira búlgara, “loura voluptuosa”, que tem medo das alturas e desfigurou o rosto com excesso de botox (dados da WikiLeaks) ¬– estava a colher os frutos de ter mudado de campo. A Líbia chegou a membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU – dois anos de mandato iniciado em Janeiro de 2009 –, ano em que assumiu também a presidência da Assembleia Geral das Nações Unidas, tendo ainda integrado o conselho de governadores da Agência Internacional de Energia Atómica.Ter chegado até ali foi mérito do autoproclamado "rei dos reis de África", que tomava “todas as decisões" e tinha “a última palavra”, notou Molly Tarhuni na entrevista ao PÚBLICO. A grande questão que a especialista da Chatam House colocava não era se ele seria alguma vez derrubado – algo que ela considerava “muito improvável” num país com menos de seis milhões de habitantes, politicamente pouco activos e sob controlo rígido das forças de segurança" –, mas “o que vai acontecer assim que ele sair de cena", já que impedira sempre qualquer alternativa à sua ditadura.

Como observou o iraniano-americano Karim Sadjadpour, investigador no Carnegie Endowment for International Peace, nos Estados Unidos, “quando se referem à queda dos regimes, os analistas geralmente dizem antes que ‘é impensável’; e depois acabam por admitir que ‘era inevitável’”. Será assim, no caso de Khadafi?

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