Pela manhã, os rebeldes já estavam a perder. Talvez tenham avançado de mais. Fixaram a linha da frente alguns quilómetros depois de Benjawad, que fica a uns 40 do importante centro petrolífero de Ras Lanuf. Não tinha sido fácil conquistar esta cidade, mas mantê-la parece ainda mais difícil. Desde sábado que o rumor dominante em Ras Lanuf era a chegada iminente das forças de Muammar Khadafi. Não era propriamente mentira, mas também não era verdade. Ainda. Os rebeldes resistiam, mas com mais sacrifício. Estar a perder era isso: sofrer mais.
Rebeldes evitam estilhaços de uma bomba lançada em Benjawad
Há pouca gente em Ras Lanuf. A maioria dos cerca de dez mil habitantes é de fora, e já fugiu. São todos trabalhadores da Ras Lanuf Oil Company Processing, e vivem nas casas construídas pela empresa, em 1982.
Benjawad é uma aldeia junto ao mar, e a sua importância é só uma: está demasiado perto de Sirte, a cidade natal de Khadafi, a menos de 150 quilómetros. Muitos acreditam que se Sirte cair, a guerra pode estar perdida para o ditador.
"Há um certo ponto a partir do qual eles não nos deixam passar", diz Mohaned, 21 anos. "Quanto nos aproximamos, eles intensificam o fogo." Foi quando os rebeldes atingiram esse ponto crítico que a tendência se reverteu.
"Eu nem cheguei a disparar a minha arma. Não vi ninguém, só as bombas a caírem à nossa volta. Tivemos de fugir", contou Jamal El Goredi, de 23 anos, depois da primeira retirada dos rebeldes. Fugiram para Benjawad, quando as tropas de Khadafi intensificaram o bombardeamento, com canhões e helicópteros. E depois mais para trás.
"Era um tenente lá na linha da frente que nos comandava", disse Jamal. "Mas a maioria das pessoas não o via. Estavam muito excitados, só queriam avançar para Sirte." Quando um jornalista perguntou ao jovem guerrilheiro que tipo de armas estavam a ser usadas pelas forças governamentais ele respondeu: "Não sei. Eu não percebo nada de armas."
Jamal viu-se de repente no meio das bombas e fugiu, como todos os companheiros. A sua opinião quanto às hipóteses de ganhar a guerra mudou de um momento para o outro. "Senti que isto não é nada, é um brinquedo, comparado com as armas deles", disse apontando para a sua espingarda. "Nós não estamos organizados, não temos armas. Khadafi é demasiado forte e demasiado louco, e tem muito dinheiro. Nunca o conseguiremos vencer. A única coisa que podemos fazer é morrer pela liberdade. É o que toda esta gente quer: morrer para mostrar ao mundo que precisamos de ajuda."
Essa noção começou a generalizar-se. As pessoas não parecem ter medo de morrer. Só recuam quando as bombas estão a cair a metros dos seus pés. Por vezes dá a impressão de que desejam ser atingidos, para colocar à frente das máquinas fotográficas e câmaras de televisão as suas feridas, os seus corpos cheios de sangue.
Tiros das janelas das casas
A meio da tarde, as forças rebeldes foram obrigadas a recuar de Benjawad. A povoação tornou-se demasiado perigosa, porque os tiros começaram a vir das janelas das casas. A população, que até aí se mostrou adepta dos rebeldes, voltava-se agora contra eles. "Os soldados de Khadafi entraram em todas as casas e obrigaram as pessoas a combater ao lado deles", disse Abdul Basset, 50 anos, que vive em Benjawad. "Eles pagaram às pessoas e puseram-lhes uma arma nas mãos."
Mas outros explicaram que parte da população de Benjawad pertence à tribo de Khadafi, ou que muitos habitantes da zona de Sirte se mudaram entretanto para a pequena população a Leste, cujos habitantes estão a usar como escudos humanos. Seja qual for a explicação, os tiros vinham das casas, e os rebeldes estavam a ser atacados de duas frentes.
"Os comandantes disseram-nos que o mais certo é termos de fugir daqui hoje", disse Mohamed. Mas enquanto uns recuavam, outros avançavam desde Ras Lanuf, Brega ou Ajdabia. A linha de combate ia recuando, mas lentamente. E cada vez havia mais feridos. As ambulâncias iam e vinham, entre a frente e o hospital de Ras Lanuf. As bombas caíam por todo o lado, e as ambulâncias aceleravam até lá, cobertas com a bandeira dos rebeldes, que as tornavam também em alvos.
Deus é grande rapazes
Ao fim da tarde, a situação na frente era dramática. Os carros, as pickups com as metralhadoras e os lança-rockets, aceleravam de um lado para o outro, ora fugiam, ora avançavam, uns incitavam as tropas com megafones, "Allah"U Akbar Shebab!" (Deus é grande rapazes), outros disparavam para o ar, ou perigosamente para todos os lados. No meio da confusão, estava-se cada vez mais atrás na estrada, mas não tão rapidamente quanto o avanço das forças inimigas, a julgar pelos lugares onde caíam as bombas, cada vez mais próximas dos rebeldes, cada vez mais em cima deles. Cada vez mais atrás deles. Para muitos, já não havia para onde recuar."Fujam! Fujam!", gritavam. "Allah"u Akbar Shebab!", "Khadafi está a matar-nos!" Os carros de um lado para o outro, gente a correr. Um homem apontou para o corpo caído e ensanguentado de um companheiro e gritou aos jornalistas: "Khadafi!" Outro apontou-lhes o caminho para a frente: "Go! Go!", para que eles vissem o que Khadafi estava a fazer. "Ele mata-nos! Ele mata-nos!" Bombas enormes, certamente disparadas de tanques, caíam a poucos metros, na areia do deserto, com uma nuvem de fumo negro e um pequeno terramoto.
No hospital de Ras Lanuf, um homem cheio de sangue levanta-se da maca e grita: "Allah"U Akbar". Ibrahim, um jovem de pele muito branca, está na sala de cuidados intensivos a ser ventilado à mão. Acaba de ser operado ao cérebro mas o cirurgião, Rida, duvida que consiga sobreviver. A lista dos feridos, uma folha que vai sendo preenchida por um barbudo de túnica branca, vai em 35, mas sempre a aumentar. A dos mortos tem cinco nomes.
Corpos desfeitos
As ambulâncias não param de chegar. Quase chocam em frente ao pequeno hospital. Há centenas de homens a correr, gritar, chorar, todos de metralhadoras e dedos nos gatilhos. A cada minuto zangam-se uns com os outros, empurram-se, disparam para o ar. De repente alguém desata a gritar que está um pró-Khadafi dentro do hospital, e foge tudo para longe. Regressam, para retirar mais um ferido de uma ambulância ou de uma pickup. Os corpos chegam cada vez mais desfeitos, há sangue por todo o lado, e pedaços de carne, que enfermeiros ou voluntários trazem na mão para mostrar aos jornalistas. "Khadafi! Khadafi!" Um cadáver é retirado, mas o sangue é tanto que ele desliza da maca sobre os dois homens que o seguravam, e caem os três, numa confusão de tubos de soro, pernas e braços e uma papa vermelha.
Levantam o cadáver, levam-no para dentro do hospital e chamam os jornalistas. O homem tem o crânio desfeito e o cérebro a sair por todos os lados. "Khadafi! Khadafi!", dizem agarrando em pedaços de massa encefálica. Um voluntário tenta reintroduzir no crânio do homem fragmentos de cérebro que caíram no chão. Um enfermeiro senta-se e chora ruidosamente. O médico retira dos bolsos do morto várias granadas, e por fim o telemóvel. Liga para o número da última chamada que ele fez e atende-lhe um irmão. Informa-o do que aconteceu e fica a saber o nome da vítima, para escrever na lista: Fadala Mohamed Hussein.
Pouco depois chega um grupo muito exaltado, informando que as forças de Khadafi estão a entrar na cidade. Um dos médicos, com o pânico nos olhos, diz que quer convocar uma conferência de imprensa. Reúne os jornalistas numa sala e pergunta: "Vocês ficam connosco, ou não?"
Benjawad é uma aldeia junto ao mar, e a sua importância é só uma: está demasiado perto de Sirte, a cidade natal de Khadafi, a menos de 150 quilómetros. Muitos acreditam que se Sirte cair, a guerra pode estar perdida para o ditador.
"Há um certo ponto a partir do qual eles não nos deixam passar", diz Mohaned, 21 anos. "Quanto nos aproximamos, eles intensificam o fogo." Foi quando os rebeldes atingiram esse ponto crítico que a tendência se reverteu.
"Eu nem cheguei a disparar a minha arma. Não vi ninguém, só as bombas a caírem à nossa volta. Tivemos de fugir", contou Jamal El Goredi, de 23 anos, depois da primeira retirada dos rebeldes. Fugiram para Benjawad, quando as tropas de Khadafi intensificaram o bombardeamento, com canhões e helicópteros. E depois mais para trás.
"Era um tenente lá na linha da frente que nos comandava", disse Jamal. "Mas a maioria das pessoas não o via. Estavam muito excitados, só queriam avançar para Sirte." Quando um jornalista perguntou ao jovem guerrilheiro que tipo de armas estavam a ser usadas pelas forças governamentais ele respondeu: "Não sei. Eu não percebo nada de armas."
Jamal viu-se de repente no meio das bombas e fugiu, como todos os companheiros. A sua opinião quanto às hipóteses de ganhar a guerra mudou de um momento para o outro. "Senti que isto não é nada, é um brinquedo, comparado com as armas deles", disse apontando para a sua espingarda. "Nós não estamos organizados, não temos armas. Khadafi é demasiado forte e demasiado louco, e tem muito dinheiro. Nunca o conseguiremos vencer. A única coisa que podemos fazer é morrer pela liberdade. É o que toda esta gente quer: morrer para mostrar ao mundo que precisamos de ajuda."
Essa noção começou a generalizar-se. As pessoas não parecem ter medo de morrer. Só recuam quando as bombas estão a cair a metros dos seus pés. Por vezes dá a impressão de que desejam ser atingidos, para colocar à frente das máquinas fotográficas e câmaras de televisão as suas feridas, os seus corpos cheios de sangue.
Tiros das janelas das casas
A meio da tarde, as forças rebeldes foram obrigadas a recuar de Benjawad. A povoação tornou-se demasiado perigosa, porque os tiros começaram a vir das janelas das casas. A população, que até aí se mostrou adepta dos rebeldes, voltava-se agora contra eles. "Os soldados de Khadafi entraram em todas as casas e obrigaram as pessoas a combater ao lado deles", disse Abdul Basset, 50 anos, que vive em Benjawad. "Eles pagaram às pessoas e puseram-lhes uma arma nas mãos."
Mas outros explicaram que parte da população de Benjawad pertence à tribo de Khadafi, ou que muitos habitantes da zona de Sirte se mudaram entretanto para a pequena população a Leste, cujos habitantes estão a usar como escudos humanos. Seja qual for a explicação, os tiros vinham das casas, e os rebeldes estavam a ser atacados de duas frentes.
"Os comandantes disseram-nos que o mais certo é termos de fugir daqui hoje", disse Mohamed. Mas enquanto uns recuavam, outros avançavam desde Ras Lanuf, Brega ou Ajdabia. A linha de combate ia recuando, mas lentamente. E cada vez havia mais feridos. As ambulâncias iam e vinham, entre a frente e o hospital de Ras Lanuf. As bombas caíam por todo o lado, e as ambulâncias aceleravam até lá, cobertas com a bandeira dos rebeldes, que as tornavam também em alvos.
Deus é grande rapazes
Ao fim da tarde, a situação na frente era dramática. Os carros, as pickups com as metralhadoras e os lança-rockets, aceleravam de um lado para o outro, ora fugiam, ora avançavam, uns incitavam as tropas com megafones, "Allah"U Akbar Shebab!" (Deus é grande rapazes), outros disparavam para o ar, ou perigosamente para todos os lados. No meio da confusão, estava-se cada vez mais atrás na estrada, mas não tão rapidamente quanto o avanço das forças inimigas, a julgar pelos lugares onde caíam as bombas, cada vez mais próximas dos rebeldes, cada vez mais em cima deles. Cada vez mais atrás deles. Para muitos, já não havia para onde recuar."Fujam! Fujam!", gritavam. "Allah"u Akbar Shebab!", "Khadafi está a matar-nos!" Os carros de um lado para o outro, gente a correr. Um homem apontou para o corpo caído e ensanguentado de um companheiro e gritou aos jornalistas: "Khadafi!" Outro apontou-lhes o caminho para a frente: "Go! Go!", para que eles vissem o que Khadafi estava a fazer. "Ele mata-nos! Ele mata-nos!" Bombas enormes, certamente disparadas de tanques, caíam a poucos metros, na areia do deserto, com uma nuvem de fumo negro e um pequeno terramoto.
No hospital de Ras Lanuf, um homem cheio de sangue levanta-se da maca e grita: "Allah"U Akbar". Ibrahim, um jovem de pele muito branca, está na sala de cuidados intensivos a ser ventilado à mão. Acaba de ser operado ao cérebro mas o cirurgião, Rida, duvida que consiga sobreviver. A lista dos feridos, uma folha que vai sendo preenchida por um barbudo de túnica branca, vai em 35, mas sempre a aumentar. A dos mortos tem cinco nomes.
Corpos desfeitos
As ambulâncias não param de chegar. Quase chocam em frente ao pequeno hospital. Há centenas de homens a correr, gritar, chorar, todos de metralhadoras e dedos nos gatilhos. A cada minuto zangam-se uns com os outros, empurram-se, disparam para o ar. De repente alguém desata a gritar que está um pró-Khadafi dentro do hospital, e foge tudo para longe. Regressam, para retirar mais um ferido de uma ambulância ou de uma pickup. Os corpos chegam cada vez mais desfeitos, há sangue por todo o lado, e pedaços de carne, que enfermeiros ou voluntários trazem na mão para mostrar aos jornalistas. "Khadafi! Khadafi!" Um cadáver é retirado, mas o sangue é tanto que ele desliza da maca sobre os dois homens que o seguravam, e caem os três, numa confusão de tubos de soro, pernas e braços e uma papa vermelha.
Levantam o cadáver, levam-no para dentro do hospital e chamam os jornalistas. O homem tem o crânio desfeito e o cérebro a sair por todos os lados. "Khadafi! Khadafi!", dizem agarrando em pedaços de massa encefálica. Um voluntário tenta reintroduzir no crânio do homem fragmentos de cérebro que caíram no chão. Um enfermeiro senta-se e chora ruidosamente. O médico retira dos bolsos do morto várias granadas, e por fim o telemóvel. Liga para o número da última chamada que ele fez e atende-lhe um irmão. Informa-o do que aconteceu e fica a saber o nome da vítima, para escrever na lista: Fadala Mohamed Hussein.
Pouco depois chega um grupo muito exaltado, informando que as forças de Khadafi estão a entrar na cidade. Um dos médicos, com o pânico nos olhos, diz que quer convocar uma conferência de imprensa. Reúne os jornalistas numa sala e pergunta: "Vocês ficam connosco, ou não?"
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