O que fazem os filhos dos ditadores com a educação do Ocidente?
O começo, se quisermos marcar uma data no calendário, foi no dia 28 de Fevereiro. Saif, o filho “reformista” do coronel Khadafi, está em cima de um jipe de metralhadora em punho. Irmãos, disse ele, temos os meios, temos as armas, lutaremos até ao último homem, até à última bala. Saif a prometer a guerra civil na Líbia, o país que é do seu pai desde 1969 e que deveria ser seu, a seguir.
Saif não mudou devido á educação ocidental.
Foi para ser líder que estudou nas melhores escolas europeias, que fez uma tese de doutoramento na London School of Economics (LSE) chamada O Papel da Sociedade Civil na Democratização das Instituições de Governo, que escreveu um artigo de opinião no jornal The Guardian sobre as futuras reformas políticas no seu país — democracia, participação da sociedade civil e valores liberais eram a sua inspiração.
O filho de Khadafi seria “o nosso homem” em Trípoli, segundo a perspectiva dos envolvidos na sua educação britânica. Com ele, Londres — e Washington — podiam conversar, fazer negócios. Quando os protestos no mundo árabe alastraram à Líbia, depois da Tunísia e do Egipto, Saif ainda teve um primeiro momento televisivo a pedir aos líbios que regressassem a casa que o futuro, com ele a mandar, iria ser diferente. Amanhã começa outra era, prometeu.
Agora esforça-se pela guerra civil e por ganhá-la, e a prestigiada LSE ficou com um duplo embaraço nos braços: Saif terá plagiado a tese de doutoramento (o caso está a ser investigado) e doou 350 mil euros para patrocinar um programa de estudos e — como Khadafi não teria nada a ver com a aplicação do dinheiro — este foi recebido sem problemas. Agora, a faculdade está a repensar o que fazer com este mecenato.
No total, a doação iria ao milhão e meio de libras (perto de dois milhões de euros). A contrapartida: peritos da escola deslocar-se-iam à Líbia para fazerem aconselhamento no país sobre políticas económicas e reformas. Na quinta-feira, o director da LSE, Howard Davies, demitiu-se. “Acho que a escola vai recuperar”, disse à estação de televisão BBC. “Mas eu próprio entendi que recuperaria mais depressa, se assumisse a culpa por este erro de julgamento”, concluiu.
Davies fora responsável pela Autoridade de Serviços Financeiros britânica, a entidade que gere o mercado deste tipo de serviços, e governador do Banco de Inglaterra. Estava há oito anos à frente da escola e não conseguiu salvar-se do tremendo embaraço Khadafi.
Na escola, e entre o corpo docente, há ainda alguma perplexidade sobre o que está a acontecer. O português Pedro Martins, professor de Economia Aplicada na prestigiada faculdade londrina, separa os dois assuntos, o dinheiro e o doutoramento. “A Líbia estava supostamente a fazer um percurso de reintegração na comunidade internacional. Nesse contexto, não me parece necessariamente negativo o LSE aceitar o donativo. No entanto, o caso muda de figura, quando se verifica que há suspeitas fortes de plágio na tese de Saif Khadafi. Trata-se de um episódio bastante embaraçoso para uma instituição de grande prestígio”, diz, respondendo ao P2 por email.
Se a demissão de Davies será suficiente para a LSE voltar ao business as usual, essa é a dúvida. Porque o novelo de conexões e de interesses que levaram Saif Khadafi a Londres só começou a ser desenrolado. Segundo a edição online do Daily Mail, um homem fundamental na aproximação de Saif à LSE foi Mark Allen, antigo MI6 (o serviço de espionagem britânico) e apresentado como uma das principais fontes de pressão para a libertação do bombista de Lockerbie.
Allen foi conselheiro da BP e foi enquanto esteve na empresa petrolífera que esta ganhou acesso aos campos de petróleo líbios.
Outro nome envolvido é o de Anthony Giddens, um homem muito próximo do antigo primeiro-ministro trabalhista Tony Blair e que era presidente da LSE em 2002, quando Saif Khadafi foi aceite como aluno de doutoramento.
O actual primeiro-ministro, o conservador David Cameron, acirrou a polémica política revelando detalhes das relações entre Londres e Trípoli nos mandatos de Tony Blair que, segundo a documentação, forneceu armamento e aconselhamento militar ao regime de Khadafi, além de prometer receber militares líbios para treino na Academia de Sandhurst.
Síndrome Al Pacino
Não está claro qual o desfecho do conflito na Líbia. Se Khadafi sair, porá simultaneamente fim à carreira política de Saif e ao seu desejo de ser um democratizador, bem como ao desejo do Ocidente em ter um grande aliado numa região estratégica. Carreira que, claro, começaria com um passo muito pouco democrático, herdando o poder do pai que lá chegou via golpe de Estado, em 1969.O que a dimensão do caso Saif irá sem dúvida fazer é levar as universidades e academias ocidentais, onde é feita a educação de muitos destes “príncipes”, a repensar as suas ligações. Até porque os artigos de opinião já começaram a atirar farpas noutras direcções. O Asia Times, e a propósito do esmagamento da revolta popular no Bahrein, publicou uma lista detalhada de figuras que passaram pela Royal Military Academy de Sandhurst, e entre eles está o Rei deste país, Hamad bin Essa al Khalifa, que é, aliás, o patrono da Fundação Sandhurst (quer dizer que a sustenta, financeiramente). Além de definir o Bahrein como “uma monarquia feudal/ditadura”, o Asia Times escreve que foram os militares de Sandhurst que, pela força, reprimiram a revolta.
“É comum a elite dos países do terceiro mundo enviarem os seus filhos para estudarem no estrangeiro, especialmente nos antigos países colonizadores”, diz Nadim Shehadi, do Departamento de Médio Oriente do think tank londrino Chatham House. É óbvia a razão por que são escolhidas estas academias e escolas — Harvard, Oxford, Cambridge, Princeton, LSE... Porque têm um padrão de ensino superior ao que existe nos países de origem destes alunos. Estes sabem que são universidades e academias que lhes dão prestígio e estatuto e, porque é bom ter formação no campo do “adversário”, é bom saber o que sabem os outros. Nesta teia de envolvimentos, há uma troca mútua, ambos os lados ganham, conhecimento e relações políticas e económicas.
O problema que agora se levanta é aquilo a que se pode chamar “síndrome Corleone”. Para quem se recorda da saga O Padrinho, Michael Corleone, interpretado por Al Pacino, é uma criatura que vive à margem do pai, até ao momento de ser chamado à sucessão. Uma vez lá, percebe que ou se torna um verdadeiro líder, ou é aniquilado. Quer isto dizer que não se espera que, uma vez de volta à sua cultura de origem, estes homens se tornem automaticamente liberais laicos. A cultura em que se nasce, política, social, económica, é quase sempre a que permanece, como explica Pedro Martins. “Parece-me que a decisão dos dirigentes de países como a Líbia de educar os seus filhos nas melhores universidades dos países desenvolvidos é uma boa indicação da vontade não só de estabelecer ligações internacionais, como também de valorização da educação. Quanto à mudança [de mentalidade] é um processo difícil, são pessoas que vão estudar para um país ocidental, já nos seus vinte e muitos anos, e há uma teia de interesses muito fortes em relação ao statu quo nos países de origem.”
Nadim Shehadi, do Chatham House, explica que nesta região do mundo há correntes que defendem que não se devem enviar futuros líderes estudar fora devido ao risco de se alienarem da realidade dos seus países. “Já ouvi dizer que alguns sauditas mantêm os príncipes totalmente afastados do contacto com o Ocidente, de forma a que conservem o entendimento local”, conta este especialista.
Para vingarem, estes futuros líderes não podem ser estrangeirados, nem ser olhados como tal. “Na Líbia, é interessante vermos os manifestantes pró-Khadafi a condenarem os líbios que vivem no estrangeiro. A fricção entre expatriados e locais é um fenómeno importante. Também vimos isso na Palestina, com o regresso dos dirigentes da OLP actuando como libertadores e as querelas com os que lá estiveram todo o tempo”, demonstra Nadim Shehadi.
Marrocos e Jordânia
Em 1999, quando os velhos monarcas do Norte de África e do Médio Oriente começaram a morrer e lhes sucederam os filhos educados em França, nos EUA e no Reino Unido, uma onda de optimismo varreu os observadores políticos. Mohammed VI de Marrocos, o terceiro Rei desde a independência do país em 1956, estudou primeiro em escolas religiosas e, depois, formou-se em Ciência Política, em Rabat, e fez um doutoramento em Direito em Nice, França.
Os analistas dizem dele que é “ligeiramente menos autoritário” do que outros líderes árabes. Mas Marrocos é uma monarquia absoluta e Mohammed é o líder da fé (a lenda diz ser descendente do profeta Maomé). Após a morte do pai, o rei Hassan, foi biografado como uma figura reformadora. Hoje, desiludidos, os optimistas constatam que pouco governa e que passa muito tempo fora de Marrocos, em férias. Em 2008, por exemplo, fez quatro períodos de férias, o último dos quais durante seis semanas em que visitou a Tailândia, o Vietname, o Brasil e a França.
Aos poucos, este Rei de 47 anos aderiu ao culto da personalidade e as fotografias gigantes de Hassan foram sendo substituídas pela sua. As mudanças sociais, económicas e políticas ficaram por fazer e Marrocos, pode dizer-se, é um país relativamente estável, mas pobre. Antes de morrer em 1999, Hassan fez algumas reformas: libertou presos políticos, abriu perspectivas às mulheres. Esperava-se que o filho fosse mais longe. A 20 de Fevereiro, 40 mil marroquinos manifestaram-se em todo o país pedindo reformas e o fim da corrupção. Foram anunciadas algumas medidas para controlar o preço dos bens essenciais.
A educação, está visto, não muda o ser humano que se é. “A universidade, para mim, serve sobretudo para o desenvolvimento intelectual dos alunos, mais do que propriamente para mudar as suas posturas éticas”, diz Pedro Martins.
Na Jordânia, nas últimas semanas, milhares têm saído à rua exigindo medidas contra o desemprego e a subida dos preços. O Rei despediu o primeiro-ministro e um novo governo foi indigitado com a tarefa de tomar medidas concretas para haver mudanças. Mas o Rei, Abdullah II, que, quando tomou posse em 1999 por morte do rei Hussein, aplicou um vasto plano de mudanças económica, já foi mais popular.
Abdullah II nasceu em Amã e passou pela academia militar de Deerfield, no Massachusetts (EUA). Estudou ainda temas do Médio Oriente em Oxford e em Georgetown (EUA) e completou os estudos militares na academia de Sandhurst, onde o pai também estivera.
Sem o drama da LSE, Sandhurst também está debaixo dos holofotes. São muitos os nomes sonantes que por lá passaram, sobretudo de antigas colónias (do Paquistão e Índia às monarquias e regimes do Médio Oriente e, entre eles, Muammar Khadafi).
Em 2000, o Governo britânico encomendou um relatório sobre o “treino e outra assistência militar fornecida aos Estados do Golfo”. Agora que os Estados árabes do Norte de África e do Médio Oriente estão instáveis, e que a onda de revoltas exigindo a democratização dos regimes alastra, Londres anunciou que irá rever as parcerias militares com alguns países.
O rei Hamad do Bahrein, que passou por Sandhurst e também esteve em Leavenworth, no Kansas, é quem define a política militar e de segurança do país, segundo um telegrama interceptado há alguns anos pela organização WikiLeaks e agora recuperado pelo Asian Times. Segundo o telegrama, Hamad gosta de “armamento pesado”, que compra aos aliados em Londres e em Washington. O príncipe herdeiro, Salman, recebeu também treino militar numa academia americana, pelo que, conclui o Asian Times, “há dois vassalos do Pentágono à frente das reformas no Bahrein”.
Hamad – trata-se de uma monarquia xiita – nomeou o filho para estabelecer o diálogo com os representantes da maioria sunita, refrescou o Governo exonerando quatro ministros, mas os protestos prosseguem nas ruas.
Feitas as contas, foram poucos os filhos de líderes totalitários que conseguiram manter o poder herdado pelos pais. Bashar al Assad, da Síria, foi um deles. Tal como os irmãos, foi educado longe dos holofotes públicos. Estudou Medicina em Damasco e especializou-se em oftalmologia. Estava em Londres, a completar os estudos, quando o pai o chamou para lhe suceder, após o desaparecimento do primogénito, Basil, que morreu num acidente de automóvel. Ao criar a sua “monarquia presidencial” na Síria, o velho presidente Hafez al-Assad foi sensato — ignorou os outros filhos, um por ser errático, outro por ter distúrbios mentais. Mudou a Constituição para Bashar poder ser chefe de Estado aos 34 anos e deu-lhe formação militar.
Kim Jong-il, na Coreia do Norte, sucedeu ao pai e já nomeou um filho como herdeiro — Kim Jong-un, que estudou na Suíça.
Mas a maior parte fracassou e alguns dirigentes estão a mudar de ideias. O Presidente do Iémen, Ali Abdullah Saleh, prometeu há dias que não irá “manobrar” para que o filho lhe suceda.
No Egipto do deposto Hosni Mubarak, a sucessão estava preparada e Gamal, o filho mais novo, seria o herdeiro. Frequentou a Universidade Americana do Cairo, estudou Finanças e trabalhou no Banco Americano no sector de investimentos. Ascendeu nas instituições de poder e, nos últimos anos, a sua influência junto do pai determinou muitas das opções do Presidente deposto, sendo atribuída à sua intervenção a deteriorização da economia egípcia e uma escalada na crónica corrupção.
Segundo a Reuters, foi Gamal quem convenceu o pai a não se demitir, quando o mundo o esperava. A notícia dá conta da discussão entre Gamal e o irmão Alaa, um homem de negócios que nunca se quis envolver em política. “Em vez de ajudares a preservar a honra do nosso pai, ajudas a prejudicar a sua imagem.” Terá sido necessária a intervenção de terceiros para separar os dois irmãos.
Stephan Kizner, autor do livro Reset: Iran, Turkey and America’s Future, argumenta num texto para o canal de informação política BLTWY que a “ideia exagerada de privilégio” que os filhos dos líderes de alguns regimes assimilam ao longo da sua vida “fá-los pensar que não há limites” para o que podem fazer.
A educação de Saif Khadafi e a deposição de Mubarak — diz Kizner — fez-nos lembrar que há uma lição escondida na História: os ditadores não devem ter filhos. “Quando as pessoas se perguntam por que razão é a Turquia o mais bem sucedido país do Médio Oriente, não devem descurar o facto de o fundador da república secular, Kemal Atatürk, não ter tido filhos (...). Ele afastou-se suavemente do poder e permitiu que o seu país encontrasse o caminho para a democracia.”
O filho de Khadafi seria “o nosso homem” em Trípoli, segundo a perspectiva dos envolvidos na sua educação britânica. Com ele, Londres — e Washington — podiam conversar, fazer negócios. Quando os protestos no mundo árabe alastraram à Líbia, depois da Tunísia e do Egipto, Saif ainda teve um primeiro momento televisivo a pedir aos líbios que regressassem a casa que o futuro, com ele a mandar, iria ser diferente. Amanhã começa outra era, prometeu.
Agora esforça-se pela guerra civil e por ganhá-la, e a prestigiada LSE ficou com um duplo embaraço nos braços: Saif terá plagiado a tese de doutoramento (o caso está a ser investigado) e doou 350 mil euros para patrocinar um programa de estudos e — como Khadafi não teria nada a ver com a aplicação do dinheiro — este foi recebido sem problemas. Agora, a faculdade está a repensar o que fazer com este mecenato.
No total, a doação iria ao milhão e meio de libras (perto de dois milhões de euros). A contrapartida: peritos da escola deslocar-se-iam à Líbia para fazerem aconselhamento no país sobre políticas económicas e reformas. Na quinta-feira, o director da LSE, Howard Davies, demitiu-se. “Acho que a escola vai recuperar”, disse à estação de televisão BBC. “Mas eu próprio entendi que recuperaria mais depressa, se assumisse a culpa por este erro de julgamento”, concluiu.
Davies fora responsável pela Autoridade de Serviços Financeiros britânica, a entidade que gere o mercado deste tipo de serviços, e governador do Banco de Inglaterra. Estava há oito anos à frente da escola e não conseguiu salvar-se do tremendo embaraço Khadafi.
Na escola, e entre o corpo docente, há ainda alguma perplexidade sobre o que está a acontecer. O português Pedro Martins, professor de Economia Aplicada na prestigiada faculdade londrina, separa os dois assuntos, o dinheiro e o doutoramento. “A Líbia estava supostamente a fazer um percurso de reintegração na comunidade internacional. Nesse contexto, não me parece necessariamente negativo o LSE aceitar o donativo. No entanto, o caso muda de figura, quando se verifica que há suspeitas fortes de plágio na tese de Saif Khadafi. Trata-se de um episódio bastante embaraçoso para uma instituição de grande prestígio”, diz, respondendo ao P2 por email.
Se a demissão de Davies será suficiente para a LSE voltar ao business as usual, essa é a dúvida. Porque o novelo de conexões e de interesses que levaram Saif Khadafi a Londres só começou a ser desenrolado. Segundo a edição online do Daily Mail, um homem fundamental na aproximação de Saif à LSE foi Mark Allen, antigo MI6 (o serviço de espionagem britânico) e apresentado como uma das principais fontes de pressão para a libertação do bombista de Lockerbie.
Allen foi conselheiro da BP e foi enquanto esteve na empresa petrolífera que esta ganhou acesso aos campos de petróleo líbios.
Outro nome envolvido é o de Anthony Giddens, um homem muito próximo do antigo primeiro-ministro trabalhista Tony Blair e que era presidente da LSE em 2002, quando Saif Khadafi foi aceite como aluno de doutoramento.
O actual primeiro-ministro, o conservador David Cameron, acirrou a polémica política revelando detalhes das relações entre Londres e Trípoli nos mandatos de Tony Blair que, segundo a documentação, forneceu armamento e aconselhamento militar ao regime de Khadafi, além de prometer receber militares líbios para treino na Academia de Sandhurst.
Síndrome Al Pacino
Não está claro qual o desfecho do conflito na Líbia. Se Khadafi sair, porá simultaneamente fim à carreira política de Saif e ao seu desejo de ser um democratizador, bem como ao desejo do Ocidente em ter um grande aliado numa região estratégica. Carreira que, claro, começaria com um passo muito pouco democrático, herdando o poder do pai que lá chegou via golpe de Estado, em 1969.O que a dimensão do caso Saif irá sem dúvida fazer é levar as universidades e academias ocidentais, onde é feita a educação de muitos destes “príncipes”, a repensar as suas ligações. Até porque os artigos de opinião já começaram a atirar farpas noutras direcções. O Asia Times, e a propósito do esmagamento da revolta popular no Bahrein, publicou uma lista detalhada de figuras que passaram pela Royal Military Academy de Sandhurst, e entre eles está o Rei deste país, Hamad bin Essa al Khalifa, que é, aliás, o patrono da Fundação Sandhurst (quer dizer que a sustenta, financeiramente). Além de definir o Bahrein como “uma monarquia feudal/ditadura”, o Asia Times escreve que foram os militares de Sandhurst que, pela força, reprimiram a revolta.
“É comum a elite dos países do terceiro mundo enviarem os seus filhos para estudarem no estrangeiro, especialmente nos antigos países colonizadores”, diz Nadim Shehadi, do Departamento de Médio Oriente do think tank londrino Chatham House. É óbvia a razão por que são escolhidas estas academias e escolas — Harvard, Oxford, Cambridge, Princeton, LSE... Porque têm um padrão de ensino superior ao que existe nos países de origem destes alunos. Estes sabem que são universidades e academias que lhes dão prestígio e estatuto e, porque é bom ter formação no campo do “adversário”, é bom saber o que sabem os outros. Nesta teia de envolvimentos, há uma troca mútua, ambos os lados ganham, conhecimento e relações políticas e económicas.
O problema que agora se levanta é aquilo a que se pode chamar “síndrome Corleone”. Para quem se recorda da saga O Padrinho, Michael Corleone, interpretado por Al Pacino, é uma criatura que vive à margem do pai, até ao momento de ser chamado à sucessão. Uma vez lá, percebe que ou se torna um verdadeiro líder, ou é aniquilado. Quer isto dizer que não se espera que, uma vez de volta à sua cultura de origem, estes homens se tornem automaticamente liberais laicos. A cultura em que se nasce, política, social, económica, é quase sempre a que permanece, como explica Pedro Martins. “Parece-me que a decisão dos dirigentes de países como a Líbia de educar os seus filhos nas melhores universidades dos países desenvolvidos é uma boa indicação da vontade não só de estabelecer ligações internacionais, como também de valorização da educação. Quanto à mudança [de mentalidade] é um processo difícil, são pessoas que vão estudar para um país ocidental, já nos seus vinte e muitos anos, e há uma teia de interesses muito fortes em relação ao statu quo nos países de origem.”
Nadim Shehadi, do Chatham House, explica que nesta região do mundo há correntes que defendem que não se devem enviar futuros líderes estudar fora devido ao risco de se alienarem da realidade dos seus países. “Já ouvi dizer que alguns sauditas mantêm os príncipes totalmente afastados do contacto com o Ocidente, de forma a que conservem o entendimento local”, conta este especialista.
Para vingarem, estes futuros líderes não podem ser estrangeirados, nem ser olhados como tal. “Na Líbia, é interessante vermos os manifestantes pró-Khadafi a condenarem os líbios que vivem no estrangeiro. A fricção entre expatriados e locais é um fenómeno importante. Também vimos isso na Palestina, com o regresso dos dirigentes da OLP actuando como libertadores e as querelas com os que lá estiveram todo o tempo”, demonstra Nadim Shehadi.
Marrocos e Jordânia
Em 1999, quando os velhos monarcas do Norte de África e do Médio Oriente começaram a morrer e lhes sucederam os filhos educados em França, nos EUA e no Reino Unido, uma onda de optimismo varreu os observadores políticos. Mohammed VI de Marrocos, o terceiro Rei desde a independência do país em 1956, estudou primeiro em escolas religiosas e, depois, formou-se em Ciência Política, em Rabat, e fez um doutoramento em Direito em Nice, França.
Os analistas dizem dele que é “ligeiramente menos autoritário” do que outros líderes árabes. Mas Marrocos é uma monarquia absoluta e Mohammed é o líder da fé (a lenda diz ser descendente do profeta Maomé). Após a morte do pai, o rei Hassan, foi biografado como uma figura reformadora. Hoje, desiludidos, os optimistas constatam que pouco governa e que passa muito tempo fora de Marrocos, em férias. Em 2008, por exemplo, fez quatro períodos de férias, o último dos quais durante seis semanas em que visitou a Tailândia, o Vietname, o Brasil e a França.
Aos poucos, este Rei de 47 anos aderiu ao culto da personalidade e as fotografias gigantes de Hassan foram sendo substituídas pela sua. As mudanças sociais, económicas e políticas ficaram por fazer e Marrocos, pode dizer-se, é um país relativamente estável, mas pobre. Antes de morrer em 1999, Hassan fez algumas reformas: libertou presos políticos, abriu perspectivas às mulheres. Esperava-se que o filho fosse mais longe. A 20 de Fevereiro, 40 mil marroquinos manifestaram-se em todo o país pedindo reformas e o fim da corrupção. Foram anunciadas algumas medidas para controlar o preço dos bens essenciais.
A educação, está visto, não muda o ser humano que se é. “A universidade, para mim, serve sobretudo para o desenvolvimento intelectual dos alunos, mais do que propriamente para mudar as suas posturas éticas”, diz Pedro Martins.
Na Jordânia, nas últimas semanas, milhares têm saído à rua exigindo medidas contra o desemprego e a subida dos preços. O Rei despediu o primeiro-ministro e um novo governo foi indigitado com a tarefa de tomar medidas concretas para haver mudanças. Mas o Rei, Abdullah II, que, quando tomou posse em 1999 por morte do rei Hussein, aplicou um vasto plano de mudanças económica, já foi mais popular.
Abdullah II nasceu em Amã e passou pela academia militar de Deerfield, no Massachusetts (EUA). Estudou ainda temas do Médio Oriente em Oxford e em Georgetown (EUA) e completou os estudos militares na academia de Sandhurst, onde o pai também estivera.
Sem o drama da LSE, Sandhurst também está debaixo dos holofotes. São muitos os nomes sonantes que por lá passaram, sobretudo de antigas colónias (do Paquistão e Índia às monarquias e regimes do Médio Oriente e, entre eles, Muammar Khadafi).
Em 2000, o Governo britânico encomendou um relatório sobre o “treino e outra assistência militar fornecida aos Estados do Golfo”. Agora que os Estados árabes do Norte de África e do Médio Oriente estão instáveis, e que a onda de revoltas exigindo a democratização dos regimes alastra, Londres anunciou que irá rever as parcerias militares com alguns países.
O rei Hamad do Bahrein, que passou por Sandhurst e também esteve em Leavenworth, no Kansas, é quem define a política militar e de segurança do país, segundo um telegrama interceptado há alguns anos pela organização WikiLeaks e agora recuperado pelo Asian Times. Segundo o telegrama, Hamad gosta de “armamento pesado”, que compra aos aliados em Londres e em Washington. O príncipe herdeiro, Salman, recebeu também treino militar numa academia americana, pelo que, conclui o Asian Times, “há dois vassalos do Pentágono à frente das reformas no Bahrein”.
Hamad – trata-se de uma monarquia xiita – nomeou o filho para estabelecer o diálogo com os representantes da maioria sunita, refrescou o Governo exonerando quatro ministros, mas os protestos prosseguem nas ruas.
Feitas as contas, foram poucos os filhos de líderes totalitários que conseguiram manter o poder herdado pelos pais. Bashar al Assad, da Síria, foi um deles. Tal como os irmãos, foi educado longe dos holofotes públicos. Estudou Medicina em Damasco e especializou-se em oftalmologia. Estava em Londres, a completar os estudos, quando o pai o chamou para lhe suceder, após o desaparecimento do primogénito, Basil, que morreu num acidente de automóvel. Ao criar a sua “monarquia presidencial” na Síria, o velho presidente Hafez al-Assad foi sensato — ignorou os outros filhos, um por ser errático, outro por ter distúrbios mentais. Mudou a Constituição para Bashar poder ser chefe de Estado aos 34 anos e deu-lhe formação militar.
Kim Jong-il, na Coreia do Norte, sucedeu ao pai e já nomeou um filho como herdeiro — Kim Jong-un, que estudou na Suíça.
Mas a maior parte fracassou e alguns dirigentes estão a mudar de ideias. O Presidente do Iémen, Ali Abdullah Saleh, prometeu há dias que não irá “manobrar” para que o filho lhe suceda.
No Egipto do deposto Hosni Mubarak, a sucessão estava preparada e Gamal, o filho mais novo, seria o herdeiro. Frequentou a Universidade Americana do Cairo, estudou Finanças e trabalhou no Banco Americano no sector de investimentos. Ascendeu nas instituições de poder e, nos últimos anos, a sua influência junto do pai determinou muitas das opções do Presidente deposto, sendo atribuída à sua intervenção a deteriorização da economia egípcia e uma escalada na crónica corrupção.
Segundo a Reuters, foi Gamal quem convenceu o pai a não se demitir, quando o mundo o esperava. A notícia dá conta da discussão entre Gamal e o irmão Alaa, um homem de negócios que nunca se quis envolver em política. “Em vez de ajudares a preservar a honra do nosso pai, ajudas a prejudicar a sua imagem.” Terá sido necessária a intervenção de terceiros para separar os dois irmãos.
Stephan Kizner, autor do livro Reset: Iran, Turkey and America’s Future, argumenta num texto para o canal de informação política BLTWY que a “ideia exagerada de privilégio” que os filhos dos líderes de alguns regimes assimilam ao longo da sua vida “fá-los pensar que não há limites” para o que podem fazer.
A educação de Saif Khadafi e a deposição de Mubarak — diz Kizner — fez-nos lembrar que há uma lição escondida na História: os ditadores não devem ter filhos. “Quando as pessoas se perguntam por que razão é a Turquia o mais bem sucedido país do Médio Oriente, não devem descurar o facto de o fundador da república secular, Kemal Atatürk, não ter tido filhos (...). Ele afastou-se suavemente do poder e permitiu que o seu país encontrasse o caminho para a democracia.”
Sem comentários:
Enviar um comentário