Uma fila interminável serpenteia junto ao navio. "Não sei para onde vamos", diz uma rapariga de 19 anos, Mary Rose. Está há várias horas à espera para entrar no paquete Alger, que vai zarpar para Alexandria, no Egipto, com dois mil refugiados a bordo. "A agência mandou-nos vir para aqui, não sabemos para onde vamos". Mary Rose é indiana e, desde há um ano, trabalha como baby-sitter em Bengasi. "Vamos todos embora, por causa dos problemas. Não sei se voltaremos."
No Egipto, muitos estão na fronteira para ajudar quem foge da Líbia
Os "problemas" terminaram por agora em Bengasi, desde que as forças leais a Muammar Khadafi foram vencidas pelos rebeldes, mas Mary Rose e os milhares de imigrantes que tentam embarcar não vêem assim a questão. "Isto está muito mau. É uma guerra, ninguém pode ficar aqui".
Mohamed, 20 anos, argelino que veio para a Líbia estudar, observa da janela do seu carro os milhares de indianos, argelinos e sírios que chegam em camiões de caixa aberta, com malas e sacos às costas e o pânico nos olhos. "São paranóicos", diz ele. "Não há problemas com os líbios. Nenhum me fez mal, eu apoio a revolução deles, e quero ficar cá."
Rafiq, que trabalha para o comité dos revolucionários, pergunta a vários indianos se algum líbio lhes fez mal. "Não, não. Os líbios são nossos amigos", responde Santokh Kumar, 30 anos, imigrante do Punjab. "Eu vou-me embora por causa da guerra. Mas quando tudo acalmar, volto". Santokh trabalha numa fábrica de transformação de madeira e vive num campo de operários, com outros imigrantes da Índia e alguns do Gana. Ganha 600 dólares por mês, que envia na totalidade para a Índia. Vive dos 75 dinares mensais do subsídio de alimentação. "O nosso patrocinador é líbio. Chama-se Amar Ali. A empresa fechou e ele mandou-nos regressar. Não temos nenhuma razão de queixa dele. E são os líbios que estão a ajudar-nos a vir para aqui. Pessoas que emprestam camiões e vão buscar os indianos, por várias povoações".
Rafiq fica satisfeito com as respostas. "Dizem que nós perseguimos os estrangeiros. Não é verdade. Podem trabalhar, fazer a sua vida. Só fazemos mal aos mercenários, de países africanos, que Khadafi contratou".
Atrás do Alger está outro navio, o Europe Palace, e noutro terminal do porto atracou um navio militar sírio. Tem capacidade para mil pessoas, provavelmente menos do que os homens, mulheres e crianças que se empurram para conseguir chegar aos dois funcionários que, sentados em cadeiras de plástico, carimbam os passaportes. Um deles é Mustafa Ahbara, 33 anos, que trabalha no aeroporto, o outro Mahmoud, 24 anos, do Crescente Vermelho. Trouxeram dois carimbos da sede dos serviços de imigração e estão a autenticar a saída dos sírios. Colaboram com o comité.
Mortos por todo o lado
"Eu não vou regressar mais à Líbia", diz Sfr, sírio de 23 anos. "Não é por mim, mas pela minha família. Têm muito medo. Viram coisas que uma pessoa não devia ver nunca." A mãe, Safira, o irmão, Mustafa, de 17 anos, e a irmã, Fátima, de 13, não conseguem dizer nada. Vivem em puro terror desde que começou a revolução. "Houve combates em frente do local onde trabalhamos", explica. "Mortos por todo o lado, carros a arder. Tenho de levar a minha família para fora deste país."
A revolução líbia começou em Bengasi no dia 17 de Fevereiro, de forma pacífica, tal como na Tunísia e no Egipto. Mas o que aconteceu a seguir foi muito diferente. As forças de Khadafi dispararam sobre os manifestantes. Usaram metralhadoras e armas pesadas, como baterias antiaéreas. Os buracos das balas são ainda visíveis.
Mas a seguir os rebeldes reagiram. Vários comandantes do Exército passaram para o lado dos revoltosos e deram luta às forças especiais do Presidente. Contaram com o apoio de centenas de soldados, e distribuíram armas à população. Os combates decorreram durante três dias, centrados na praça Berka, onde se situa a sede das forças de Khadafi, a Katiba. É um complexo militar cercado por muros altos. No interior, há vários edifícios onde se aquartelavam as forças especiais, um palco onde o Presidente, quando vinha à cidade, fazia os seus discursos ao povo, e vários luxuosos palácios onde ele e os seus apaniguados se hospedavam.
"Os habitantes nunca tinham entrado", diz Ramsi, que trabalha para o comité. "Nem sequer se podiam aproximar destes muros. Sabia-se apenas que Khadafi dormia sempre num palácio diferente, por razões de segurança, porque desconfiava do povo de Bengasi."No dia 17 e seguintes, foi em Katiba que os militares dos batalhões presidenciais e os seus mercenários lutaram contra o povo. Houve tiroteio ininterrupto durante dois dias, com um balanço final de 600 mortos e dois mil feridos. No final, quase todos os líderes militares tinham desertado para o lado das forças anti-regime, e vários soldados ao serviço do contingente pró-Khadafi recusavam-se a obedecer às ordens para disparar sobre o povo. Os que tiveram esta atitude foram assassinados pelos chefes, diz Mahr, 36 anos, mecânico, que garante ter testemunhado essas execuções. "Eu fui um dos primeiros a entrar aqui. Eles ainda cá estavam, a defender-se. Depois começaram a fugir, pelas traseiras, disparando para todo o lado. Fizemos mais de 400 prisioneiros, na maioria estrangeiros, que confessaram estar a ser pagos."
O fim da batalha começou com a atitude desesperada de um jovem rebelde. Entrou no seu carro e acelerou contra o portão de Katiba. A entrada de madeira e ferro rebentou, com a explosão do veículo, abrindo caminho às forças rebeldes. O jovem, que era casado e tinha três filhos, não sobreviveu.
Na fuga, as forças de Khadafi incendiaram os edifícios. Dos palácios, de que ainda é possível ver os vestígios de vitrais e mosaicos dourados, quase só restam paredes queimadas. São agora local de atracção. Mulheres e crianças andam de sala em sala, sobre escombros. Nos pátios do complexo, carinhas pick-up fazem piões e derrapagens, aceleram com a música aos berros. Uma delas pára e um jovem diz, da janela, apontando para a destruição circundante: "Vejam o que um Presidente é capaz de fazer às pessoas normais do seu país". E arranca com os pneus a chiar, entre as carcaças de carros incendiados. "As pessoas estão a experimentar a liberdade", justifica Ramzi. "Eu também. E é uma sensação muito boa. Ó meu Deus, como é uma sensação boa".
Mohamed, 20 anos, argelino que veio para a Líbia estudar, observa da janela do seu carro os milhares de indianos, argelinos e sírios que chegam em camiões de caixa aberta, com malas e sacos às costas e o pânico nos olhos. "São paranóicos", diz ele. "Não há problemas com os líbios. Nenhum me fez mal, eu apoio a revolução deles, e quero ficar cá."
Rafiq, que trabalha para o comité dos revolucionários, pergunta a vários indianos se algum líbio lhes fez mal. "Não, não. Os líbios são nossos amigos", responde Santokh Kumar, 30 anos, imigrante do Punjab. "Eu vou-me embora por causa da guerra. Mas quando tudo acalmar, volto". Santokh trabalha numa fábrica de transformação de madeira e vive num campo de operários, com outros imigrantes da Índia e alguns do Gana. Ganha 600 dólares por mês, que envia na totalidade para a Índia. Vive dos 75 dinares mensais do subsídio de alimentação. "O nosso patrocinador é líbio. Chama-se Amar Ali. A empresa fechou e ele mandou-nos regressar. Não temos nenhuma razão de queixa dele. E são os líbios que estão a ajudar-nos a vir para aqui. Pessoas que emprestam camiões e vão buscar os indianos, por várias povoações".
Rafiq fica satisfeito com as respostas. "Dizem que nós perseguimos os estrangeiros. Não é verdade. Podem trabalhar, fazer a sua vida. Só fazemos mal aos mercenários, de países africanos, que Khadafi contratou".
Atrás do Alger está outro navio, o Europe Palace, e noutro terminal do porto atracou um navio militar sírio. Tem capacidade para mil pessoas, provavelmente menos do que os homens, mulheres e crianças que se empurram para conseguir chegar aos dois funcionários que, sentados em cadeiras de plástico, carimbam os passaportes. Um deles é Mustafa Ahbara, 33 anos, que trabalha no aeroporto, o outro Mahmoud, 24 anos, do Crescente Vermelho. Trouxeram dois carimbos da sede dos serviços de imigração e estão a autenticar a saída dos sírios. Colaboram com o comité.
Mortos por todo o lado
"Eu não vou regressar mais à Líbia", diz Sfr, sírio de 23 anos. "Não é por mim, mas pela minha família. Têm muito medo. Viram coisas que uma pessoa não devia ver nunca." A mãe, Safira, o irmão, Mustafa, de 17 anos, e a irmã, Fátima, de 13, não conseguem dizer nada. Vivem em puro terror desde que começou a revolução. "Houve combates em frente do local onde trabalhamos", explica. "Mortos por todo o lado, carros a arder. Tenho de levar a minha família para fora deste país."
A revolução líbia começou em Bengasi no dia 17 de Fevereiro, de forma pacífica, tal como na Tunísia e no Egipto. Mas o que aconteceu a seguir foi muito diferente. As forças de Khadafi dispararam sobre os manifestantes. Usaram metralhadoras e armas pesadas, como baterias antiaéreas. Os buracos das balas são ainda visíveis.
Mas a seguir os rebeldes reagiram. Vários comandantes do Exército passaram para o lado dos revoltosos e deram luta às forças especiais do Presidente. Contaram com o apoio de centenas de soldados, e distribuíram armas à população. Os combates decorreram durante três dias, centrados na praça Berka, onde se situa a sede das forças de Khadafi, a Katiba. É um complexo militar cercado por muros altos. No interior, há vários edifícios onde se aquartelavam as forças especiais, um palco onde o Presidente, quando vinha à cidade, fazia os seus discursos ao povo, e vários luxuosos palácios onde ele e os seus apaniguados se hospedavam.
"Os habitantes nunca tinham entrado", diz Ramsi, que trabalha para o comité. "Nem sequer se podiam aproximar destes muros. Sabia-se apenas que Khadafi dormia sempre num palácio diferente, por razões de segurança, porque desconfiava do povo de Bengasi."No dia 17 e seguintes, foi em Katiba que os militares dos batalhões presidenciais e os seus mercenários lutaram contra o povo. Houve tiroteio ininterrupto durante dois dias, com um balanço final de 600 mortos e dois mil feridos. No final, quase todos os líderes militares tinham desertado para o lado das forças anti-regime, e vários soldados ao serviço do contingente pró-Khadafi recusavam-se a obedecer às ordens para disparar sobre o povo. Os que tiveram esta atitude foram assassinados pelos chefes, diz Mahr, 36 anos, mecânico, que garante ter testemunhado essas execuções. "Eu fui um dos primeiros a entrar aqui. Eles ainda cá estavam, a defender-se. Depois começaram a fugir, pelas traseiras, disparando para todo o lado. Fizemos mais de 400 prisioneiros, na maioria estrangeiros, que confessaram estar a ser pagos."
O fim da batalha começou com a atitude desesperada de um jovem rebelde. Entrou no seu carro e acelerou contra o portão de Katiba. A entrada de madeira e ferro rebentou, com a explosão do veículo, abrindo caminho às forças rebeldes. O jovem, que era casado e tinha três filhos, não sobreviveu.
Na fuga, as forças de Khadafi incendiaram os edifícios. Dos palácios, de que ainda é possível ver os vestígios de vitrais e mosaicos dourados, quase só restam paredes queimadas. São agora local de atracção. Mulheres e crianças andam de sala em sala, sobre escombros. Nos pátios do complexo, carinhas pick-up fazem piões e derrapagens, aceleram com a música aos berros. Uma delas pára e um jovem diz, da janela, apontando para a destruição circundante: "Vejam o que um Presidente é capaz de fazer às pessoas normais do seu país". E arranca com os pneus a chiar, entre as carcaças de carros incendiados. "As pessoas estão a experimentar a liberdade", justifica Ramzi. "Eu também. E é uma sensação muito boa. Ó meu Deus, como é uma sensação boa".
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